quarta-feira, 8 de agosto de 2012

ARTAUD: CORPO SEM ÓRGÃOS E PRÁTICA DE LIBERDADE


ARTAUD: CORPO SEM ÓRGÃOS E PRÁTICA DE LIBERDADE[1]

Guilherme Giuliano Nicolau[2]

Quando me chamaram aqui para dar uma palestra, pensei: “O que eu, um garoto de 19 anos, tenho para dizer? Como dizer? Ainda tenho tanto a aprender!”. Um medo tomou posse. O medo de chorar, de gaguejar, força da mais patética, força da qual rimos; o choro edipianizado da busca pela mamãe, nada tão anti-Natura, tão patético como o latido de um cachorro.

            Depois do medo, percebi que só seria possível se largasse a tudo: largasse a papai, largasse a mamãe, largasse a Ego. Ora, eu não sou um garoto de 19 anos, “quem sou eu? De onde venho?” – Artaud se questionaria isso desde os oito anos de idade e diria:

[...]
Eu sou Antonin Artaud
E basta dizê-lo,
Como sei dizê-lo,
Imediatamente
Vereis o meu corpo atual
Voar em estilhaços
E
em dois mil aspectos notórios
Refazer
Um novo corpo
Onde nunca mais
Podereis
Esquecer-me.  
- ANTONIN ARTAUD[3]

            Não poderia entrar aqui sem que largasse a tudo e a toda essa mesquinharia burguesa; eu disse, disse que era capaz, caso não conseguisse seguir uma estrutura lógica de uma palestra, disse que era bem capaz de berrar, de me cortar, de tirar a roupa e cagar, na frente de todo o público; depois, pegaria um quadro original de Picasso e rasgá-lo-ia, enfiando o seu interior, em um movimento de cima para baixo, na cabeça de alguém – como em um filme dos Irmãos Marx – e agora, acompanhado de uma risada não tão infantil, mas a risada paranóica de um conto de Edgar Allan Poe. Ora, o que é isso? O que é cagar? Esse ato, como funciona? O que é cagar, o que é foder? Isto choca? O que choca? Como é que funcionam todos esses corpos que estão sujeitos a valores e julgamentos? Qual é o seu potencial revolucionário? O Corpo Drogado, o Corpo Masoquista, o Corpo Esquizo – todos marginalizados na constituição social ocidental.

            Se eu viesse aqui, acendesse um baseado, cheirasse cocaína, fodesse com minha mãe, com meu pai e com meu tio AO MESMO TEMPO, bebesse uma pinga barata a ponto de cair no chão, mas resgatar forças do externo e levantar novamente, me chicotear, me bater, costurar a minha boca, costurar o cu, rasgar-me de tal maneira que não sobre a nenhum órgão; isto choca? Ao que choca? REPITO: “VEREIS O MEU CORPO ATUAL, VOAR EM ESTILHAÇOS, E EM DOIS MIL ASPECTOS NOTÓRIOS, REFAZER, UM NOVO CORPO, ONDE NUNCA MAIS, PODEREIS ESQUECER-ME”. Será que em um ato tão brutal e bonito como este, do qual torna possível emanar a vida, ainda é possível se observar a estrutura de um “Eu”, de um “Ego”? Vou além, será possível encontrar a Édipo, a papai-mamãe? Não há atitude mais libertária pela vida, pela criatividade, tudo além do Bem e do Mal – EXTEMPORÂNEO. Talvez não devesse vir aqui e falar, talvez, realmente, deveria vir aqui e cagar, foder e ainda dizer para a mais mesquinha “A madame me acompanharia nesta dança? Porra!”.

Artaud diz: “Escrevo para os Loucos”. Artaud escreve PELOS loucos. O que é escrever? O que é fazer arte? Não existem devires-escritor. Existem sim, devires-animal. Escrever é isso: largar a toda essa mesquinharia, não fechar-se aos problemas do suposto Ego, as contas para pagar, os seus problemas pessoais, etc; escrever não é contar uma historinha. Escrever é libertar-se de tudo aquilo que te fecha e te circunda; de tudo aquilo que te constitui, de tudo aquilo que é definido e conhecido; é libertar-se para o Caos e para a escuridão, para o imprevisível; é encontrar-se com a imanência Natura, encontrar-se antes da distinção Homem-Natureza, antes de qualquer distinção, encontrar-se nesse plano imanente por onde tudo passa, por onde todos os fluxos do desejo passam, por onde tudo coexiste. Por isso Devir-animal. Por isso Teatro da Crueldade; pois é cruel, é brutal. Esse Teatro ritualístico e tribal não é nunca místico (no modo transcendente como se concebe no Ocidente), mas é no tribal que a tudo se rompe, quebra e rasga, permitindo que todas as afecções, todos os fluxos de vida circulem, possibilitando o diferente, possibilitando a multiplicidade, possibilitando o vir-a-ser, possibilitando a Liberdade, a Ética.

CRUELDADE:
[...]
se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.  
- ANTONIN ARTAUD[4]

            O que é esse Corpo sem Órgãos? Como ele funciona? Antes de observarmos a esse conceito, retomemos brevemente Nietzsche, sobre a arte. Em “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche toma uma dialética entre Apolo e Dionísio. Tracemos rapidamente ela (talvez sem os aprofundamentos necessários, mas a tomemos brevemente para seguir a cadeia de razão).
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APOLO: é apresentado por Nietzsche como o deus do sonho, das formas, das regras, das medidas, dos limites individuais. O apolíneo é a aparência, a individualidade, o jogo das figuras bem delineadas.

Apolo representa domínio da imagem, da metáfora, isto é, da dissimulação. Esta categorização identifica a conceptualização com a aparência. Mas Apolo representa também o equilíbrio, a moderação dos sentidos e, num certo sentido, a própria civilidade, ou melhor, o modo como esta é ordinariamente compreendida. A Ordem.

DIONÍSIO: é apresentado como o gênio ou impulso do exagero, da fruição, da embriaguez extática, do sentido místico do Universo, da libertação dos instintos. É o deus do vinho, da dança, da música e ao qual as representações de tragédias eram dedicadas. Dionísio representa, portanto, o irracional, a quebra das barreiras impostas pela civilização, a dissolução dos limites do indivíduo e o eterno devir. Dionísio é o princípio metafísico do ser que é assim, paradoxalmente, compreendido como eterno fluir.
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Claramente Nietzsche dá mais importância a Dionísio, como princípio de possibilitar a vida. Mas é necessário perceber que ele não anula Apolo, a entrega total a Dionísio equivale à destruição completa do indivíduo.

Mas Dionísio foi esquecido durante séculos, tendo a presença apenas de Apolo, tendo presença apenas da Ordem, da Univocidade, do Eterno e do Universal. O homem como animal irracional foi esquecido, agora ele é colocado apenas como esse homem racional, acreditado evoluído e civilizado, trazendo consigo os sinônimos de Progresso e de Ordem. Ora! Mas que progresso nós trazemos! Esse Progresso evolucionista de um sistema de Estados, de racionalização social, que nos domestica o corpo e a alma, delimitando funções específicas, delimitando o legal e o ilegal, o normal e o patológico.

É assim, pela Ordem e pelo ideal de Progresso que trabalhamos com uma ética protestante, para sustentar esse ente metafísico-inexistente do Estado; ora, mas que Progresso? Aonde queremos chegar? A Deus? Aonde o Estado quer chegar? Aonde a civilização quer chegar? A Deus? A vida é ela mesma e isto basta. Não existem evoluções. Ora, somos tão evoluídos com nossos ternos e gravatas, somos tão diferente dos animais, não somos? Saiba se portar na mesa, pois você não é um bárbaro. Saiba andar e agir corretamente, você não é um selvagem. Quando somos reduzidos à valores sociais, aonde há espaço para a vida? Quando define-se um processo subjetivo de individualização, de sujeições de corpos dóceis que passam a ser fonte de saber para todo o olhar dos poderes especialistas, que esquadrinham e categorizam, em um estado quase policial: aonde há espaço para a vida?

Nietzsche resgata toda uma genealogia da moral, para mostrar que desde o pensamento socrático estamos condenados à essa situação. Sócrates, aquele chato que queria dizer mais da vida dos outros do que eles mesmos; para Sócrates ninguém pode conceber suas próprias perspecções de amizade, amor, nem de nada; para Sócrates existe apenas UM Amor, UMA Amizade e, que só pode ser conhecida racionalmente; Sócrates não é tão ingênuo quando diz “Só sei que nada sei”. Ele garante assim uma autoridade do saber que só pode ser conhecido racionalmente (e aquele que nega a razão, está condenado a permanecer na caverna); é uma autoridade do saber científico racional, único legítimo; autoridade da Ordem; algo que continuará durante todo o período Escolástico, continuará no pensamento moderno com Descartes, continuará no Idealismo Alemão.

Ora, mas que racionalidade é essa, que em seu extremo culmina em duas Guerras Mundiais das mais brutais, onde, no campo de guerra ocorrem mortes por mortes das mais medíocres?

Aquele que é condenado a permanecer na caverna é o ignorante, o insipiente, o louco; a partir daí não se interromperá de codificar a todas as coisas e, a todos esses (o louco, o delinqüente); apropria-se de suas imagens, marginalizando-os, isolando-os: como ícones que definirão o legal e o ilegal, o normal e o patológico.  Pois é necessário definir a isso, afinal, “Quem suportaria ou respeitaria a estes sujeitos fardados (com a bata, o diploma, ou o distintivo) que nos param para pedir os nossos documentos e nos vigiam o tempo todo se não fosse a atuação deles em relação ao crime?”.

Não há nada mais racional que Mussolini, Hitler e Stálin: racionalização social; fascismo de Estado. Mas existem Mussolinis, Hitlers, Stálins desde sempre, microfascismos cotidianos que nos oprimem, micropoderes autoritários, articulados através de inúmeras instituições hierárquicas que nos julgam e punem. Todas com suas redes de poder, com fluxos que transpassam todas as vidas, com Discursos que impõe a sua própria Verdade Absoluta. É contra todo esse fascismo moral que Nietzsche escreve, dizendo que “só como fenómeno estético se vê legitimada a existência do mundo”. A vida é ela mesma e isso basta, O Eterno Retorno. Só dessa maneira a vida poderia fluir, com o devir, além do Bem e do Mal, além da Moral. Cito Deleuze:

Eis porque o problema fundamental da filosofia política permanece aquele que Spinoza soube colocar: “Por que os homens combatem pela sua servidão como se fosse sua salvação?” Como se chega a gritar: ainda mais impostos! Menos pão! Como diz Reich, o espantoso não é que pessoas roubem, que outros façam greve, mas antes que os famintos não roubem sempre e que os explorados não façam sempre greve: por que os homens suportam desde séculos a exploração, a humilhação, a ponto de querer isso, não apenas para os outros mas para si próprios? Nunca Reich foi maior pensador do que quando recusa invocar um desconhecimento ou uma ilusão das massas para explicar o fascismo, e pede uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, mas desejaram o fascismo nesse momento, nessas circunstâncias, e é isso que é preciso explicar, essa perversão do desejo gregário. (DELEUZE&GUATTARI. 1976, pp. 46 e 47)

Ora, como desejamos a nossa servidão? Como desejamos nos submeter ao padre, ao psicanalista, ao policial, ao médico? Como desejamos nos submeter à Igreja e à Religião, à Família, ao Estado e toda a sua estrutura hierárquica, à todas as Insituições? Como nos submetemos aos discursos, como obedecemos às codificações? Como passamos a crer em um livre-arbítrio individualizado em cada corpo, em cada Ego e esquecemos as determinações do Cosmos?

Espinosa, semelhante a Nietzsche, trabalhará em cima da Ética, para propor a Liberdade subjetiva. Distingue ele a Moral e a Ética; nega-se um Deus moral, criador e transcendente e propõe-se “Deus sive Natura” (Deus ou Natureza): sendo todas as “criaturas” apenas modos desses atributos ou modificações dessa substância (imanência). Os homens ignorantes das causas e das naturezas – das composições e decomposições, das relações entre todos os corpos e mentes, de todos os fluxos que transpassam a todos e a todas as vidas, compostos de uma única substância –, os homens reduzidos à consciência do acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei lhes escapa, são eles escravos de qualquer coisa, angustiados e infelizes, na medida de sua imperfeição.

Espinosa, o materialista, pretende com isso se contrapor com o pensamento cartesiano, o princípio tradicional em que se fundava a Moral como empreendimento de dominação das paixões pela consciência: quando o corpo agia, a alma padecia, dizia-se, e a alma não atuava sem que o corpo padecesse por sua vez.. Mas, para Espinosa, ao contrário: o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão na alma.

[...] mas nós nem sequer sabemos de que é capaz um corpo. Porque não o sabemos, tagarelamos. Como dirá Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas “o que surpreende é, acima de tudo, o corpo... (DELEUZE. 2002, pp. 23 e 24)

É uma provocação; é uma atenção ao corpo que, tanto como Nietzsche, como Bataille, como Foucault estariam sempre atentos. Para Espinosa, a consciência é uma ilusão; ela não é nunca uma causa final, é apenas a percepção dos efeitos de um Todo; “a consciência é puramente transitiva. Mas ela não é uma propriedade do Todo, nem de nenhum todo em particular; ela apenas tem um valor informativo, e de uma informação ainda necessariamente confusa e mutilada” ((DELEUZE. 2002, p. 25). É necessarário que a própria consciência tenha uma causa.

Aqueles que negam o sumo bem, desconhecem a imanência, e tomam pela consciência os efeitos como causas, invocará o seu poder sobre o corpo (ilusão dos decretos livres). “Nos casos em que a consciência não pode imaginar-se causa primeira, nem organizadora dos fins, invoca um Deus dotado de entendimento e de vontade, operando por causas finais ou decretos livres, para preparar para o homem um mundo na medida de sua glória e dos seus castigos (ilusão teológica). Não basta sequer dizer que a consciência gera ilusões: ela é inseparável da tripla ilusão que a constitui, ilusão de finalidade, ilusão de liberdade, ilusão teológica. A consciência é apenas um sonho de olhos abertos. “É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite; um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferia ter calado” (DELEUZE. 2002, p. 26). Ignora-se a definição pelo diferente.

Nietszche diz “para além do Bem e do Mal ao menos não significa para além do bom e do mau”. Deleuze, sobre Espinosa, dirá dois modos de existência do homem:

[...] será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por compor a sua relação com as relações combináveis e, por esse meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as conseqüencias, pronto a gemer e a acusar toda vez que o  efeito sofrido se mostra contrário e lhe revela a sua própria impotência. É que, à força de encontrar indiscriminadamente qualquer coisa, seja sob que relação for, julgando que sempre nos sairemos bem à custa de muita violência ou um pouco de astúcia, como não fazer mais encontros maus do que bons? Como evitar que nos destruamos a nós mesmos, à força de culpabilidade, e destruamos os outros à força de ressentimento, propagando por toda parte a nosa própria impotência e a nossa própria escravidão, a nossa própria doença, as nossas próprias indigestões, as nossas toxinas e venenos? Acabaremos por não mais encontrar sequer a nós mesmo. (DELEUZE. 2002, p. 29)

A moral é o julgamento de Deus, o sistema de Julgamento (expresso pelo padre, pelo psicanalista, pelo policial, pelo jurista; fluxos de poder que se articulam através de suas Instituições e do Estado). “Mas a Ética desarticula o sistema do julgamento. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau)” (DELEUZE, 2002, p. 29). Portanto, aquele que não compreende a Natureza, a imanência, e toma a consciência como causa, passa a moralizar e se submete a um “Deve-se”.

A lei moral é um dever, a obediência é o seu único efeito e a sua única finalidade. A lei, moral ou social, não nos traz conhecimento algum, não dá nada a conhecer; impede a formação de conhecimento (a lei do tirano). Existe uma diferença de natureza entre a Ética e a Moral. A Moral, uma relação de mandamento-obediência, a Ética a relação entre conhecido-conhecimento. “A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau”. (DELEUZE. 2002, p. 30)

Pois então pelo desconhecimento da Natureza e tomados pela Moral, os homens buscam as coisas fúteis como fim; buscam a honra, a fortuna, a concupisciência, a segurança. “A verdadeira cidade propõe aos cidadãos o amor da liberdade de preferência à esperança das recompensas ou mesmo a segurança dos bens; pois “é aos escravos, não aos homens livres que damos recompensas por boa conduta” (DELEUZE. 2002, p. 32). Os homens, tomados pelo medo de perder o que tem e pela esperança de obter coisas efêmeras, tomam-se de um moralismo supersticioso que os tornam escravos. O escravo, o tirano e o padre: trindade moralista. “O grande segredo do regime monárquico e seu profundo interesse consistem em enganar os homens, dissimulado, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação” (ESPINOSA, 1670). Mas o sumo bem é o certo; Espinosa o encontra quando perde a tudo e passa a polir lentes; a filosofia, a arte de polir lentes, como modo de enxergar a natureza, do conhecimento da imanência; assim se observa mais cuidadosamente essas figuras terceiras (padre, psicanalista) que ditam verdades; assim como imagens terceiras, como Édipo.

E, é dessa maneira, que Deleuze sustenta: “Finalmente, o grande livro sobre o corpo sem órgãos não seria a Ética (de Espinosa)?” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 13). Artaud era em si um Corpo sem Órgãos; um Corpo sem Órgãos em prática, a sua arte era também a sua vida, a sua arte era política e essencialmente revolucionária. Artaud, o momo, o louco, o improdutivo à sociedade Moderna  racionalizadora de funções sociais aos indivíduos, com o objetivo de garantir esse sistema ocidental de Estados-Nação: um Imenso Transcendental, ilocalizável e insondável a qual todos desejam por se fazerem escravos ao desconhecerem a imanência e seus infinitos atributos. É esse mesmo Artaud, inconformado com a escravidão e ignorância dos homens que tomam a ilusão da consciência como causa final, inconformado com o delírio da sociedade, que, ele, vai à busca dos desejos, na imanência, buscando as afecções alegres, evitando os venenos e as afecções tristes, buscando a Alegria, a Felicidade e a Liberdade.

Eu não creio a nem pai
nem mãe
E não tenho
a papai-mamãe
- GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI[5]

Artaud, um maldito (como Bataille, Nietzsche, Heráclito, Espinosa, Caroll), possui um pensamento nômade antiautoritário, antifascista. Buscando a sua liberdade e seu devir-animal na Crueldade, ele declara guerra à Cultura (declara guerra às obras-primas, ao que é ordenado e já codificado, exposto em um museu e que a nada diz aos famintos, nada diz PELOS famintos); declara assim, guerra a todo o conceito de Modernidade e de Progresso evolucionista, declara guerra ao Estado, a tudo que é transcendente, à psicanálise e à psiquiatria; Artaud se nega adentrar no jogo das verdades e constitui a Crueldade como estratégia e forma de resistência. Buscar a Crueldade é buscar a imanência. Buscar a produção (do diferente) no improdutivo. Busca-se a Criação no Caos e não numa ordem evolucionista ou numa relação dialética de síntese hegeliana que busca o Perfeito (e o Verdadeiro). Produzir o improdutivo, produzir o Corpo sem Órgãos é produzir algo contra toda essa triangulação que impossibilita a vida, a multiplicidade e a Diferença, impossibilita a potência da vida, suas intensidades, suas afecções alegres.

É nesse aspecto revolucionário de semelhança esquizo (como Homo Natura, buscando na imanência os seus desejos), que ele declara guerra às Instituições, principalmente à Família (pois a primária). Instituições estas, transcendentes; instituições regidas por uma moral dita Eterna e Universal, dogmática (semelhança indesejável com o Cristianismo). Ele declara uma guerra ética, contra o saber e seu discurso científico. Declara guerra ao positivismo e a todo o programa e controle que garante a sociedade moderna racionalizada (do qual a psicanálise, a psiquiatria, a sociologia e a ciência em si são forças essenciais). Declara guerra ao ”Deve-se”, indo para além do Bem e do Mal, polindo as lentes de ver o mundo, para só assim observar aquilo que é bom e aquilo que é mau, aquilo que se compõe com afecções alegres e aquilo que é veneno. Artaud é perigoso, é subversivo. Conseqüentemente, acaba internado em hospitais psiquiátricos, entre terapias de choque que tentam domesticá-lo, infantilizá-lo (como se faz com os animais e as sábias e sinceras crianças) diante de papai-mamãe-ego.

Curiosamente, o teatro psicanalítico parece primeiramente nos libertar, para em seguida nos aprisionar novamente dentro do segredo sujo da família burguesa; mas Artaud sabe como funciona o inconsciente: não como teatro, mas como indústria. O inconsciente como produção. Pois tudo é produção, produz-se inclusive o improdutivo. E é isso que faz Artaud ao declarar e viver a Crueldade, cria para si um Corpo sem Órgãos; ele se sente pressionado, assim como Van Gogh. O organismo e tudo que aquilo que é constituído, o sufoca; ele precisa buscar a vida, pois está se afogando e, assim ele cria uma máquina de guerra: a Crueldade, o Corpo sem Órgãos. Uma máquina de guerra tão brutal que possa destruir a tudo que ofusque sua visão; Artaud passa a polir as lentes de ver o mundo junto com Espinosa e junto ao pincel de Van Gogh; busca destruir a tudo aquilo que é triangulizado, para se chegar à vida, à imanência, à natureza como processo de produção. Artaud quer libertar os órgãos de seus automatismos e possibilitar novamente a produção desejante como código binário de acoplamentos (teta-boca, pinto-boceta). A natureza é simples: teta-boca, pinto-boceta; Connect-i-cut. A natureza é produção, tudo é produção. Não é nunca um teatro, um mito, com uma moral e com personagens como o Édipo, o padre, o psicanalista, o policial. A natureza é um processo de produção binária, de acoplamentos, teta-boca; e esse terceiro que sempre tenta surgir com sua verdade, discursos e abstração complexa, é o autoritário, é a origem dos micro-fascismos.

INCONSCIENTE MAQUÍNICO:

O corpo sob a pele é uma usina superaquecida
E fora,
O doente brilha,
Irradia,
Por todo os seus poros,
Estourados.
- ANTONIN ARTAUD [6]

Assim como o esquizofrênico, Artaud tenta se colocar antes da distinção homem-natureza, antes de qualquer distinção; O passeio esquizofrênico:

 [...] é diferente dos momentos que Lenz se encontra na casa do seu bom pastor, que o força a situar-se socialmente, em relação ao Deus da religião, em relação ao pai à mãe. Lá, ao contrário, ele está nas montanhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus algum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. “Que quer meu pai? Ele pode dar-me mais? Impossível. Deixem-me em paz.” Tudo feito máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpinas, que se acoplam com as de seu corpo. Ruído ininterrupto de máquinas. “Ele pensava que deveria ser um sentimento de infinita beatitude ser tocado pela vida profunda de toda forma, ter uma alma para as pedras, os metais, a água, e as plantas, acolher dentro de si todos os objetos da natureza, sonhadoramente, como as flores absorver o ar com o crescer e o decrescer da lua.” Ser uma máquina clorofílica, ou de fotossíntese, pelo menos insinuar seu corpo como uma peça em máquinas assim. Lenz se colocou antes da distinção homem-natureza, antes de todas as marcações que esta distinção condiciona. Ele não vive a natureza como natureza, mas a natureza como processo de produção. Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que produz um no outro e acopla as máquinas. Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada. (DELEUZE&GUATTARI. 1976, p.16)

O inconsciente é maquínico, funciona como indústria, como produção desejante. Ele não é individual, mas coletivo, funciona através de acoplamentos de peças que coexistem (uma não existiria sem a outra), engrenagens que escoam a produção para outras peças que se acoplarão, em um processo esquizofrênico, sem começo nem fim, sem estruturas e nem linearidades, mas como rizoma, com intensidades. O inconsciente imanente, onde tudo coexiste e é fruto da mesma substância, variando apenas os modos, como Espinosa demonstra – é este que se deve conhecer.

 Corpo sem Órgãos: Sendo a natureza como processo de produção, o esquizofrênico (longe de se estabelecer um pólo naturalista) é aquele que se encontra antes da distinção homem-natureza, natureza-indústria e, reconhece o processo de produção de desejos além das fibras, com seus fluxos e afectos. Processo este, que deve tender ao seu próprio fim e não a uma terrível intensificação que nos consome o corpo e a alma. Não existem nunca unidades isoladas e transcendentes que se definem por si só, mas tudo está relacionado em uma rede demasiadamente complexa que se desliza no plano imanente da produção, se desliza no Corpo sem Órgãos. Não existem vespas e margaridas; mas existem devir-vespa e devir-margarida; “a vespa pensa que é margarida” – a verdade que jaz no delírio.

É assim que Deleuze propõe substituir o estudo da biologia pela etologia; a biologia, mesmo quando tenta escapar do calabouço evolucionista, tende a dar mais atenção aos seres de sistema complexo, do que aos seres simples – o classificação dos seres vivos credita o aperfeiçoamento dos sistemas biológicos, tendo como início os seres simples e concluindo em sres complexos (da ameba ao mamífero).

A etologia, vê a beleza da funcionalidade de um ser simples como o carrapato, capaz de um único devir, ficando anos esperando a presença de calor animal para cumprir seu objetivo (e em poucos dias estará morto), o que significa isso? É a potência da natureza por si só, sem intromissões metafísicas, ou mesquinharia de comportamentos familiares, comuns ao mamífero – é isso que significa quando Deleuze diz que não gosta de cachorros, tampouco gatos, não gosta do miado, do latido, do ronron, do carinho, da dependência para suas necessidades fisiológicas, animais domésticos e domesticados que se comportam como um humano cristão e fazem parte da sua estrutura familiar, tudo tão semelhante com u mrebanho, pacífico, desprotegido, sem defesas, tão passivo como uma vaca (o ícone dos mamíferos); não é apenas uma questão de gosto, é uma opção filosófica sensata. Podemos ir além e dizermos que na etologia, dois animais de mesma espécie biológica podem ser completamente distintos em seu comportamento, em seu devir, até contraditórios e em conflito, constituindo-se como mônadas, ou sistemas próprios que lutam cotidianamente por constituir-se como tal dentro de outro sistema mais amplo que é sua verdadeira fonte ao mesmo tempo em que luta por destruir o sistema e constituí-lo novamente. Lembremos do caso do cavalo, explicitado por Deleuze: um simples cavalo de tração é domesticado para um único devir: servir o homem pela tração, se tornar ferramenta humana; completamente diferente de um cavalo selvagem, da potência simultaneamente criadora e destruidora, acima de tudo incontrolável. Não é incomum termos relatos como os de Lenz, Nietzsche, Artaud, pela indignação do controle de um cavalo, ou simplesmente pelo trator do cavalo como vontade de potência que os persegue, indecisão entre compreender e aceitar, reprimir ou domesticar, ou simplesmente abrir-se completamente aos fluxos do Crepúsculo dos Deuses, na possibilidade de rasgar-se, mutilar-se, e no sofrimento refazer-se novamente como um novo Corpo livre, um Super-Homem.

E é isso que Nietzsche quer dizer ao fazer-se Super-Homem: é um modo de vida livre, adequado a natureza, longe do medo de sua crueldade criadora, é estar ao lado do cavalo selvagem e não viver como um cavalo de tração, domado pela civilização que tomou Roma ao agenciar Platão, a culpa judaico-cristã e a tecnologia de violência dos bárbaros. A noção de honra da Idade Média nada mais representa do que esse mundo domesticado por genocídios, que inclusive lutou por domesticar a usura e a economia, mundo do qual tem medo de desfazer-se por completo e apenas administra sua desterritorialização esquecendo de conceder a liberdade de criar a outro; aquele que vai um pouco além, como Van Gogh, é louco. Nietzsche foi considerado louco após o incidente com o cavalo em Turim (apesar de sabermos da possibilidade de sífilis ou câncer no cérebro); Van Gogh deu a liberdade que qualquer um poderia se dar, de ser tocado todas as manhãs por crepúsculos maravilhosos, e se sentia pressionado todos os dias pelos corvos da civilização; Artaud, destrui-se diversas vezes, deslocou-se até o México para encontrar-se com índios em experiências psicodélicas junto aos Deuses da Natureza, mas numa maneira de eternamente destruir-se e renovar-se, em um sistema que não é metafísico – criou um modo de vida particular, andando com o cajado de Cristo, amuletos e anéis, como verdadeira esponja de diferenças, e assim como todos, chamou a atenção e foi internado para um processo de cura.

A cura, desse ponto de vista civilizatório, pode ser possível: também os humanos podem ser domesticados, e a psiquiatria e psicanálise serão eficientes nisso: em substituir a falência de outras referências (Deus, o Estado, o Rei) e encontrar um novo ponto transcendente (o pai, a mãe) onde o louco poderá assentar-se e viver corretamente; mas ás vezes não é possível: acaba no internamento, na medicação, eletrochoques, lobotomia, acabam em estado catatônico – práticas que devido ao movimento anti-psiquiátrico cessaram, mas nunca deixar de estar presentes como um desejo paranóico do saber médico.

Mas sínteses atrás de sínteses, a síntese conjuntiva psicanalítica refere-se a um mundo capitalista desterritorializado por excelência, e é apenas repetição e reprodução de sínteses disjuntivas de épocas anteriores: ela funciona como grande potência útil para expansão do capitalismo em si mesmo, e nunca para seu fim; domestica a potência esquizofrência por conjunções úteis a reprodução do capital e a sobrevida do capitalismo (já não quer mais limitar a reprodução  como na Idade Média); mas como uma fita cassete que é regravada várias vezes, cada vez mais o teatro psicanílitico revela-se como farsa, assim como o sistema capitalista parece exaurir-se (desse ponto de vista, a semelhança com o marxismo é evidente).

O agenciamente do sistema capitalista a psicanálise e a família, é forma de reproduzirmos o sistema já esgotado que vivemos, ampliá-lo ad infinitum, impossibilitando a liberdade de criação em um mundo que apenas joga com desterritorializações (sínteses conectivas de sociedades primitivas) e territorializações (sínteses disjuntivas do Urstutt, das instituições modernas): seria isso a síntese conjuntiva, uma verdadeira farsa que joga ao reproduzir pontualmente histórias anteriores a seu serviço, mesmo que seja contraditório (assim, o capitalismo é por essência de contradição e conflito: joga-se, por exemplo, com o confronto de capitalistas e proletários, para sua própria expansão – ambos, capitalistas e proletários, são escravos e senhores do sistema). É como dizer que o capitalismo joga entre o estatismo e o livre-mercado para manter-se (são os cliclos do capitalismo), e acreditamos que o seu fim é o esgotamento ipsu facto; mas esse é um ponto de vista econômico, com base no materialismo clássico (“são as estruturas que determinam a superestrutura, são as condições materiais que determinam o espírito, a ideologia e a esfera imaterial são apenas formas de garantir a conjuntura econômica”). Do ponto de vista da esquizoanálise, o processo insiste em não ter fim, e ampliar-se mais e mais, tornando as contradições sua verdadeira potência através da excelência em administrá-la: o capitalismo sempre esteve em crise, e quanto pior ela é, maior o capitalismo será. E administração se dá em espírito de ação, ideologia ativa, ou dispositivo de poder (como Foucault prefere denominar), que coloca um terceiro elemento transcendental no processo: assim, a esquizoanálise consiste em fornecer um método construtivista que coloca a economia e a ideologia em um mesmo plano, sem hierarquias, que pode ser chamado de Economia do Desejo; por isso diz-se que é o materialismo por excelência.

Dessa forma, a URSS também fazia parte do mesmo sistema capitalista (capitalismo de Estado), e o compreendia como ninguém, conseguindo modernizar-se forçadamente em poucas décadas, através do racionalismo burocrático, do centralismo estatal, do unipartidarismo e do autoritarismo violento. A URSS preferia o ensino da disciplina pelo trabalho forçado (a ode ao trabalho – instrumento de tortura que nos faz escravos e senhores de nós mesmos) do que o genocídio, mesmo que isso também significasse muitas mortes. Mas fracassou ao não conseguir jogar, como o cinismo do capitalismo ocidental, com o estatismo e o livre-mercado, assim como o autoritarismo e a liberdade, para administrar o seu sistema expansivo; seria como um sistema bipolar, que apesar dos lados se confrontarem e negarem-se, eles se fortalecem em equilibrio (as vezes bem desequilibrado) para sustentar o sistema. Qualquer um dos lados não quer morrer, e para isso, prefere que o outro não morra: é nisso que consiste o cinismo da contemporaneidade.

E isso significa que o fim na URSS ou o fim da hegemonia americana não daria fim ao processo, e essa foi a nossa grande ilusão. Com o fim na URSS, expandiu-se ainda muito mais, fomos da sociedade disciplinar a uma sociedade controle, com novas capturas e uma administração ainda mais eficiente: modular, ininterrupta, híbrida, fora das instituições (da prisão, da escola, do Estado), talvez já até fora da família (se está na família por fora da família), informatizada, em rede. Cada vez mais a seu limite exmpandido por administração, cada vez mais semelhante a esquizofrenia, mas administrada pelo cinismo. E também é nisso que devemos tomar cuidado: em domar a potência com o objetivo de administração do sistema.

O design, a publicidade, a moda, a empresa contemporânea e seus recursos humanos flexíveis em busca de funcionários-bohêmios-mas-profissionais-criativos-artistas-mas-funcionais-felizes-mas-críticos-cultos-mas-fúteis, o mercado financeiro, o modo de produção toyotista, todos pareceram conseguir adequar-se muito bem ao mundo pós-68, as suas revidincações e seus modos de vida, incorporando-os e capturando-os, dando um novo fôlego ao sistema, ainda que seja muito mais contraditório e conflituoso; até mesmo artistas malditos são adaptados ao meio e seus processos criativos violentos são pacificados para fins úteis do desejo de consumo. O mundo hoje tem enorme espaço para o artista profissional, portador da técnica (cada vez mais desnecessária pelas ferramenteas eletrônicas), porém acima de tudo é o artista que experimentou o suficiente na sua formação para ser um profissional da razão criativa, um grande conhecedor do processo criativo, de maneira a aplicá-lo para um fim útil em retorno de capital (econômico, social, intelectual ou cultural): temos como exemplo os magníficos designs e plataformas interativas dos produtos da Apple, fetiche do consumo que movimenta bilhões como uma das maiores marcas do mercado, para fins de entretenimento ou informação, movimentando mais capital que o setor industrial e material por excelência.

Isso significa dizer que o mundo que vivemos já percebeu que a produção e a criação está longe de se concentrar na indústria e na ciência, podendo haver enorme reprodução de Capital na criatividade e nos serviços voltados ao consumo do sonho que vende: a liberdade pela interatividade, a diferença pelas escolhas oferecidas de produtos minóricos. Ou seja, vínculos de produção aos distintos modos de vida urbano que compram apenas metade da liberdade, compram processos incompletos, processos semi-úteis, work-in-progress para utilidade, processos semi-criativos de uma zonamodular de indistinção que trouxe retornos favoráveis a acumulação e reprodução do sistema, seja em economia, seja em desejos – percebeu-se que a diversidade é um ótimo negócios. Basta reconhecer, que depois de 68, o grande passo, ainda não reconhecido, para essa sociedade foi o colapso da URSS, e a necessária impulsão para novos limites dos desejos vigilados. E por isso, também devemos tomar cuidado de não cair nessa armadilha ao utilizarmos as ferramentas conceituais da esquizoanálise.

Seja dito que, a sociedade do trabalho, o mundo pós-moderno, o capitalismo avançado, as sociedades pós-catastróficas do Leste Europeu revelam o mundo que vivemos e terá seu momento “grandioso” apenas no século XXI, e não em fins do século XX. O fim, portanto, só aconteceria com outro tipo de revolução, não apenas material, mas o que Guatarri chamou de revolução molecular, ou seja, uma nova maneira de pensar e viver: e não ter medo de viver, não ter medo de dar um fim. Em certo sentido, Marx até estaria certo, que a evolução do capitalismo revelaria suas contradições, e seu fim seria insustentável. Conforme avance mais, as contradições são mais evidentes: mas somos nós, na maneira como nos concebemos que podemos dar fim ao processo e temos medo, só nos resta as optar por isso ou pela barbárie; enquanto nos decidirmos por apenas homens, e não super-homens – por mais ridículo que esse nome possa parecer hoje – só nos restará a barbárie, e o ignorado fim da humanidade que, algum dia, deverá chegar de facto (em tempos geológicos). Vivemos em um mundo em que processos de desterritorialização e de territorialização são sempre incompletos, meras ferramentas de um sistema que as monopoliza apenas para fins úteis a sua sobrevivência. E cada vez mais, ela se revela como farsa: passamos da criação do carro (e suas implicações) para a semi-importância do consumo de um bem, como o Ipod.

Devemos então, compreender e vivenciar o processo esquizofrênico com criatividade, e sem medo de dar fim do processo criado a séculos e que temos medo de matar definitivamente para criar o novo, para construirmos novamente. Devemos nos utilizar da potência do processo criativo para construir para nós um novo ponto de territorialidade de facto, um novo espaço de liberdade e de intensidades, novas práticas e novos modos de vida, e resistir a capturação pela utilidade, como a pura resistência do ato de criar se propõe, a liberdade da violência pura. Diferente do design, seria como construir uma mesa esquizofrênica: com pernas não-alinhadas, com ausência de pernas, pernas para cima e para o lado, pesos e medidas não balanceadas geometricamente, uma mesa não-eficiente, mas uma máquina de criatividade funcional para o choque. Criarmos nossa pequena máquina com nosso corpo, pedras, casaco e bolsos, transferindo da boca para os bolsos, para o cu e para os ombros, de maneira que sempre tenha uma outra peça sobreçalente que nos obrigue a movimentar de novo, fechando o sistema de boca, bolso e pedra, capaz de se reabastecer no próprio movimento inútil, na produção do vazio que nos falta, na produção do improdutivo que nos falta.

Vale reafirmar que isso não significa que o esquizofrênico não sofra, não deva ser medicado, não deva ser ajudado (não se quer romanticizar uma doença). E queremos dizer que não falamos do esquizofrênico em si, esquizfrênico como entidade clínica. Falamos dessa potência, que pode desnaturalizar-se do indivíduo, mas potência que está presente nos delírios de um esquizofrência. Ao desnaturalizar, Deleuze & Guatarri preferem chamar esse universo de Esquizofrenia, universo que faz parte da história da filosofia e foi substituído por termos modernos (o que pode dar possibilidades para más interpretações e críticas precoces), o estudo desse universo eles chamam de Esquizoanálise; inclusive a História Universal pode ser estudada de um ponto de vista esquizoanalítico, como feito em seu clássico O Anti-Édipo.

Cito Deleuze: "As máquinas desejantes nos fazem um organismo; mas dentro desta produção, na sua própria produção [de produção], o corpo sofre por estar organizado assim, por não ter outra organização, ou organização alguma" (DELEUZE&GUATTARI. 1976, p. 22). É aí que surge, no processo, o Corpo pleno sem Órgãos, como o "improdutível". Pois o desejo também deseja a morte e é com o Corpo sem Órgãos que isso se dá. O Corpo sem Órgãos é perpetuamente reinjetado na produção, é antiprodução e, é ainda uma característica desse processo acoplar a produção à antiprodução. É uma etapa fundamental para o desencadear do processo que sempre se renova, vem-a-ser, devém.

É como o narrador-máquina da Recherche de Proust: um Corpo Vazio que lamenta a falta de órgãos pelo ciúmes sentido a Albertina; um narrador vazio e incapturável, que se define pelos seus agenciamentos assim como define os próprios agenciamentos, adaptável, formado e formador das personagens, suas relações e seu universo psicológico, destruindo-se para recriar-se. O narrador é esse Insconsciente vazio onde se confunde com as personagens, seus desejos e vícios, e as próprias relações de desejos muitas vezes vistos como irreconciliáveis no teatro psicanalítico redutor. No universo proustiano há etapas da composição à progressiva decomposição das leis do amor e da sexualidade que se encontra em um universo psicológico democrático. Do amor intersexual, ao homossexualismo irreconciliável de Charlus e Albertina, “estas séries, por sua vez, desembocam em um universo transexual onde os sexos compartimentados, encaixados, se reagrupam em cada um para comunicar com os de outro segundo vias transversais aberrantes” (DELEUZE, 2006, p.168). Da normalidade do amor intersexual, passa-se ao segundo nível da neurose edipiana típica aprisionada nas frustrações de uma psicologia individualizante, chega-se a um terceiro nível pelo plano do narrador, onde traz-se uma inocência vegetal de decomposição, introduzindo a loucura no processo como força libertadora e potência última de transformação e capacidade de agenciamento de tons aparentemente irreconciliáveis, que dançam no plano vazio do narrador. 

Em toda a indistinção do narrador pelos delírios de Charlus ou de Albertina, as personagens se encontram em uma relação transversal nesse plano de consistência imanente que é o narrador – narrador vazio e livre de autoridade, único plano do possível, que passa por cima de qualquer individualidade imperial – essa “mistura” compõe a máquina literária de Proust conferindo-lhe um perfil ético revolucionário, abrindo pelo narrador-sem-órgãos um amplo espaço de liberdade para agenciamentos diversos, verdadeiro Devir, enorme espaço de criação.

A loucura que constitui o terceiro plano, um plano de imanência, é essencial, sem a loucura a máquina literária não seria possível, ela só se constrói sobre um Corpo-Sem-Órgãos privado de todo o uso voluntário e organizado de suas faculdades. Mas esse plano é possuidor de extrema sensibilidade e memória, no sentido que qualquer movimento, qualquer fluxo transpassado, qualquer instigo que um órgão alocando-se possa vir a provocá-lo geram um esboço intensivo, que por fim provocam o uso involuntário. Deleuze nos diz: “Sensibilidade involuntária, memória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos de diversas natureza” (DELEUZE, 2006, p.173). Esse plano de imanência que é o narrador, é vazio. O narrador, nesse caso, não é uma figura imperial do significante, mas coadjuvante dos agenciamentos de sua loucura, típica formação esquizofrênica não individualizada na forma de um corpo orgânico (o homem, o animal), loucura imanente que está em qualquer processo da Natureza indistinta. Narrador incorpóreo, esquizofrênico universal que agencia desejos diversos “para fazê-los marionetes de seu próprio delírio, potências intensivas de seu Corpo Sem Órgãos, perfis de sua própria loucura” (DELEUZE, 2006, p.173). Deleuze ainda comparará esse processo do narrador com o de uma aranha:

Mas o que é um Corpo Sem Órgãos? Também a aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade que a faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda e a faz pular sobre a  presa. (...) cada fio movimentado por esse ou aquele signo: a teia e a aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. (...) estranha plasticidade do narrador. Esse corpo-aranha do narrador. (DELEUZE, 2006, pp. 172-173)

É o Corpo sem Órgãos que possibilita o Devir. Pois é assim, é justamente na produção que ele funciona como antiprodução. Artaud busca no seu teatro da Crueldade seu Devir-animal, suas necessidades e desejos. É nesta atitude de antiprodução que ele tem seu aspecto revolucionário, questionando todas as Instituições, Saberes e Poderes que se dizem Eternos e Universais dentro da sociedade (ainda) moderna, que tentam afirmar a sua existência. Mas vamos para além da existência e não existência, vamos para o Devir. O Corpo sem Órgãos, nega e destrói a tudo que busca ser centro, a tudo que busca ser Eterno e Único, a tudo que procura extasiar sua existência como necessária para tudo; o Corpo sem Órgãos busca destruir a tudo que é ordenado, possibilitando o Novo, o Diferente, a vida, as multiplicidades de relações, a Liberdade de tudo e todos interagirem com seus fluxos. O Corpo sem Órgãos busca a morte para possibilitar a vida; pois a vida é enxertada pela morte (imanentes).

É na arte que Artaud busca suas linhas de fuga e sua máquina de guerra. Decide destruir a tudo que é ordenado para poder conhecer a natureza e possibilitar a vida; o Corpo sem Órgãos e o teatro da Crueldade são sua máquina de guerra contra isso. Deve-se lutar contra toda a tentativa de codificação; ali, onde o autoritarismo tenta classificar e ordenar, deve-se fugir; ali, no buraco onde o autoritarismo busca preencher, deve-se cavar mais fundo, buscar outros buracos, estabelecer linhas de fuga. Nós, homens, somos como Hermes e devemos burlar Apolo, despistar Apolo, despistar a Ordem. É esse mesmo Hermes que cria a lira, do som mais belo que encanta até a Apolo.

E é essa a função política da arte; a arte como política desterritorializante que possibilita a liberdade; a arte não como metáfora; a arte que choca, que deve chocar; aí que encontramos Dionísio, Artaud lutou para se encontrar com Dionísio. Só assim se possibilitaria a vida. Pois os homens são como Hermes. “Não o homem enquanto rei da criação, mas como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as formas ou de todos os gêneros, que é encarregado das estrelas e dos animais, e que não cessa de ligar uma máquina-órgão em uma máquina-energia, uma árvore no seu corpo, um seio na boca, o sol no cu: eterno encarregado das máquinas do universo.” (DELEUZE&GUATTARI. 1976, p. 19)

Não uma arte mítica, ou ordenada; uma arte que choque e toque a toda a vida. É viver a arte. Artaud buscou um teatro novo; um teatro-vida, pois sua vida era o seu teatro. Pois ele precisava, se sentia sufocado, estava se afogando, precisava se rasgar de tal forma tribal que pudesse se encontrar no plano imanente de produção de desejos para construir o novo. Em sua vida-teatro, não existem platéias; é um teatro mais preocupado em burlar a renúncia de si, a moral e o cuidado dos outros, para dar espaço ao cuidado de si, a estética da existência e à liberdade. E por isso a arte precisa ser cruel, chocar a todas as vidas, destruir a todos os corpos e mentes, destroçar e desordenar a tudo e a todos.

 O Corpo sem Órgãos esteve sempre presente, não é algo a ser criado ou inventado. Ele é parte de todo e qualquer processo. Artaud é em si um Corpo sem Órgãos. Em 1968, ele estava presente. Com Antônio Conselheiro também estava. Com os hippies, os beatniks, artistas em geral, ele, o Corpo sem Órgãos sempre esteve lá, cotidianamente: mesmo que não reconhecido, abaixo de todo o asfalto urbano. E ele é uma prática. O Corpo sem Órgãos não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. Uma prática de resistência contra o Organismo, este que é pregado pelos moralistas aos quais todos se escravizam; organismos de higienização e controle; registros mutiladores e disciplinares.

 Agora podemos saber como o corpo masoquista, o corpo drogado e o corpo esquizo funcionam; sua função política e atitude revolucionária; é em si um ato-perigoso.

Como Espinosa demonstra, desconhecendo o campo da imanência (lá, onde se produzem os infinitos desejos), os homens racionais se tornam irracionais e se desesperam, se tornando moralistas e escravos, estando sempre à mercê dos teólogos, dos psicanalistas, dos padres, dos juristas, de qualquer crença e superstição; são eles, tomados pelo medo e pela esperança, que prontamente se encantam pela culpa e pela confissão, se sujeitando ao poder de algum ente.

E é por isso que Deleuze diz que, a principal questão é: “como criar para si um Corpo sem Órgãos?”. Ele está lá, sempre no submundo, imerso nos esgotos. Durante a madrugada mostra a sua face diante do Caos, entre a boemia e a indiferença, entre a desordem. Está lá, onde os ratos habitam.

 Bukowski, maravilhosamente em uma crônica (que cada linha merece palmas) diz que os fanáticos revolucionários são tão supersticiosos e irracionais como os fanáticos religiosos: são capazes de queimar a tudo, queimar até a avó e, assim, quando não tiver a mais nada, descobrir-se-á quantos ratos moram na cidade, “não ratos humanos mas ratos-ratos. E descobrirão que os ratos são as últimas coisas a se afogar, a queimar, a morrer de fome; que eles são as primeiras coisas com capacidade de achar comida e água porque estiveram fazendo isso durante séculos sem nenhuma ajuda. Os ratos são os verdadeiros revolucionários; os ratos são os verdadeiros undergrounds, mas não querem o seu cu exceto para mordiscar (...)” (BUKOWSKI. 2000, p. 86). Vá ao centro de São Paulo, na “boca de lixo”, de madrugada, entre as proximidades da Praça da República e ele, o Corpo sem Órgãos, também estará lá: entre as casas de sadomasoquismo, entre as prostitutas e travestis, entre viciados e andrógenos, entre ratos.

O Corpo sem Órgãos sempre existiu; Bukowski ainda diz “se existe uma batalha, e eu acredito que existiu, e foi isso que produziu Van Goghs e Mahlers bem como Dizzy Gillespies e Charley Parkers, então por favor tomem cuidado com os seus líderes, pois existem muitos nas suas fileiras que prefeririam ser presidente da General Motors do que incendiar o Posto Shell da esquina. Mas como eles não podem ter um eles pegam o outro. São esses ratos humanos que por séculos nos têm mantido onde nos encontramos (...)”.(BUKOWSKI. 2000, p. 89)

Pois que tomemos cuidado com nossos líderes, tomemos cuidado para não nos tornarmos rebanho de qualquer figura e discurso; tomemos cuidado para não nos tornarmos fanáticos e desejarmos nossa própria escravidão, legitimando algo como autoritário. Os fanáticos religiosos e os fanáticos revolucionários: merda fria e merda quente, é tudo merda. “(...) você não consegue diferenciar cu de buceta, irmãos. Imaginem isso e vocês já tem um começo. Ouçam com atenção e vocês já têm um começo. Engula tudo, e você está morto. Deus se mandou da árvore jogou a cobra e a buceta apertada do paraíso para longe e agora você tem Karl Marx atirando maçãs douradas da mesma árvore, principalmente no rosto de preto” (BUKOWSKI. 2000, p. 89). Deleuze diz:

Os drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os Corpo sem Órgãos prestam homenagem a Espinosa. O Corpo sem Órgãos é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).
Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre por ali. O padre lançou a tríplice maldição sobre o desejo: a da lei negativa, a da regra extrínseca, a do ideal transcendente. (DELEUZE&GUATTARI, 1996, p. 15)

 Se não é o padre, é o psicanalista, sempre este que coloca um transcendente que esbarra o processo binário do desejo e apropria a imagem de desejo como falta (não como produção). É contra isto que se deve lutar. E é contra isso que todos esses lutaram. Artaud vivenciou isso, junto com Van Gogh:

Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.
[...]
Se não tivesse havido médicos
nunca teria havidos doentes,
nem esqueletos de mortos
doentes para escorraçar e esfolar,
                         porque foi com médicos e não com doentes que a sociedade começou
                       - ANTONIN ARTAUD[7]

E é contra esse moralismo que Deleuze escreve, mostrando onde está o Corpo sem Órgãos: “Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender intensidades contínuas para um Corpo sem Órgãos. Conectar, conjugar, continuar: todo um "diagrama" contra os programas ainda significantes e subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de consistência. É somente aí que o Corpo sem Órgãos se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina privada, pronta, segundo as circunstâncias, para ramificar-se em outras máquinas coletivas” (DELEUZE&GUATTARI, 1996, p. 24). Semelhantemente, Foucault irá defender a multiplicidade de relações e a produção de distintos modos de vida.

Pois se vamos fazer teatro, se vamos fazer arte, que vivenciemos a arte! Que nos destrocemos e destrocemos aos outros, nos destrocemos de tal maneira que seja possível nos libertar de nossos automatismos, para polirmos as lentes e largar o moralismo, encontrando-nos no campo imanente e, a partir daí, possibilitar a criação; pois é daí que o novo sempre surge, em um campo com infinitos atributos. Que choquemos a nós mesmos, que choquemos aos outros; não só no palco, mas na vida, na rua, nas instituições; é preciso levar o teatro para as ruas e um teatro espontâneo que nunca se repita, fazendo com que platéia e atores se confundam. Artaud já havia dito que a tragédia no palco já não basta mais, é necessário transportá-la para a vida! É necessário cagar, foder, mijar e se cortar! Que cuidemos da estética de nossas próprias vidas, de nossos próprios corpos, libertemos nossos corpos e mentes disciplinados de nossos automatismos: a preocupação ética com o cuidado de si.

 A arte já não é mais aquela Arte metafísica (que busca ser independente do público), dividida em “arte baixa” e “arte alta”, que busca a Perfeição e a Verdade, enjaulada em um teatro, em uma moldura ou em uma forma-fôrma, com barreiras que separam platéia e artistas. As barreiras agora são (e tendem a ficar mais) porosas; tudo se confunde em uma relação de rede de fluxos demasiada complexa. Deve-se estar atento, sempre à espreita, em busca de algum encontro, no imprevisto – aonde a arte se encontra? Não se deve ter fórmulas.

O motor da História é inevitável, independente do nosso prazer individual de gozo moral: não existem dois motores, um bom e um mal. Você pode chamar pelo nome que quiser, pode chamá-lo de demônio ou santo salvador, mas é apenas uma: a mesma potência comete atrocidades e também constrói prédios e pinta quadros. E nela não há barreira entre o Bem e o Mal, não há valor, por mais que queiramos imputá-los. Se pensar em outros termos, a incondicionalidade da História tem uma simpatia pelo demônio.

Na mesma ação coletiva pode haver violência e revolução, pois a revolução é necessariamente violenta e direta. Junte Godard e Rolling Stones, somando ao radicalismo racial de uma minoria nada ingênua como os Panteras Negras e você verá; junte em Maio de 68 estudantes, operários, mendigos, gays, imigrantes e lá estará a verdadeira Greve Geral, em um corpo coletivo que se encontrou, mesmo que em outros momentos se ignorem ou se detestem (essa mesquinharia infantil é nula, nada significa, nada importa). Se apenas houvesse um, e falasse apenas por um, seria patético. E você deverá juntar mais, e mais, pois o processo fechado de um círculo é sempre incompleto, narcísico, paradoxal. E você juntará com todos os outros processos que se agenciam e se confrontam, nunca haverá paz. Você juntará Mao Tsé-Tung com Pop Arte, Lênin com antropofagia, Duchamp, Beckett e Artaud com gastronomia escatológica, faça o Exército Vermelho foder com a Frida Kahlo, Cabaré e Rock n’ Roll, Edgar Allan Poe com rock gótico, Baudelaire com rock industrial, Rimbaud a beatnics, Mozart a 68, Schoenberg a Bob Wilson, tecnologia a arte, Pop Filosofia, Marx e psicanálise, barulho (noise) a cinema marginal, leve literatos americanos e irlandeses para combater junto a anarquistas na Guerra Civil espanhola, e lá, justo lá você estará, sempre incompleto, rasgado, torturado, para buscar rasgar-se e costurar-se novamente, cada vez mais. Esse grande Inconsciente, verdadeiro motor, estará sempre lá para transformar as pequenas partes, sempre incompletas, que se rasgarão novamente umas com as outras. O monopólio é a sua própria falência, e ele é insustentável. Não há limites, reescreva Marx, reescreva Freud, reescreva Lacan para a sua vida, para seu trabalho, produza a partir outro incompleto a partir do incompleto produto de outro incompleto, deixe um Corpo violento que seja capaz de revelar a patetice de tudo que se julga absoluto a partir do pesado humor do ridículo que Bataille e Poe são capazes. Seja um gótico umbandista, tanto faz – mas não crie o absoluto para si.

Independente dos conceitos, das palavras, dos jogos linguísticos, das autorias acadêmicas (das quais não cessamos de recorrer, inclusive para afirmar isso) – o motor continuará, com ou sem Humanidade.  Independente de Deleuze, Foucault, Espinosa & Cia, terem se tornado celebridades, autoridade e autoria absoluta, com jargões e conceitos-chave sendo cotidianamente reproduzidos até a banalização, não importa. A minha própria fala já faz parte dessa banalidade e não importa: leia ou não leia, leia a metade ou leia tudo, mas depois me xingue, me critique, me foda, apague tudo novamente, corte, rasgue e cole (isso, faça colagem!), me ofenda com as suas colagens, por favor, faça aquilo que eu NÃO quero; se não aguenta mais, corte um pedaço do meu cérebro, corte um pedaço do teu cérebro, escreva outro para destruir novamente. Pois o motor funciona sem autoria, por fora da Lei, antes do Significado, muito antes do Significante, e mais anterior a qualquer possibilidade de interpretação moderna e racional: se a tudo destruir, ele se moverá (esperemos que não tenha um intruso, um terceiro para administrá-lo). Por isso, não se prenda a nada, e dê espaço para explodir esse texto, explodir essas palavras, e explodir a tudo aquilo que te dizem ser abominável ou detestável. Faça dessa abominação alguma coisa, crie a partir dela algo novo. Visualize Marx, Foucault, Deleuze, Freud, quem quiser, e planeje uma estratégia terrorista com um pensamento obsessivo: “um desses dias os cortarei em pedacinhos”. Os torture, corte a carne viva e coma suas entranhas, mate Marx, mate Foucault, construa seu pequeno grande e sensível incompreendido monstro, Dr. Frankstein!

 A arte emoldurada já não nos diz muita coisa, as Obras-Primas já não nos dizem muito, ela já é codificada e está com Apolo. Se a Indústria Cultural se apossou da arte, é necessário estabelecer linhas de fuga, é necessário burlar. Se capturado, burlamos novamente como um Eterno Retorno. Isso será sempre inevitável, então ao menos não sejamos cínicos e saibamos da nossa transitoriedade e finitude. Se o é assim, burlaremos novamente, e a única eternidade será a certeza de burlar. Nada programado; é o incerto; de qualquer maneira, fluxos, sempre fluxos. Que a dança liberte nossos corpos, assim como nossas almas de nossos automatismos; pois corpo, sabemos, é necessariamente alma. Choque aos corpos e mentes maltratados e disciplinados, robotizados nas filas do trem do metrô. Os faça dançar, como Björk faz em “Dançando no Escuro”, com operários maltratados em uma civilização industrial decadente. Não a dança do balé clássico, rígido, duro, programado, cartesiano, mas algo fluido como Merce Cunningham, ou algo ainda a ser (perpetuamente) criado, em um efeito ritornello. Não o corpo inviolável, disciplinado, útil e eficiente, mas o corpo estético, ético, libertário, vazio, que choca e afeta, afecta, como os trabalhos de Ana Mendieta, Marina Abramovici, Otto Muehl, Ulrike Ottinger,  e como as artes do corpo e a arte da performance propõe e nos leva ao limite de todas as esferaras humanas (e questionar esse limite). Não importa; que falemos pelo cu e caguemos pela boca, que choquemos e desestabilizemos o que já é garantido, dando espaço ao novo, ao diferente, à liberdade. Deve-se estar atento para nunca nos tornarmos um autoritário; e deve-se estar atento, realmente atento para, ao criar algo novo, não ser fascista, não instaurar a pobreza em toda a grandeza. Também devemos ser absolutamente sinceros no processo, para não cairmos no cinismo, na demagogia de dar novo fôlego ao sistema, devemos doar a nossa própria carne, oferecer sangue aos Deuses, rituais de sacrifício que resultem em morte brutal e violenta, que não reste nada a não ser o cair do chão. Estamos à espreita, a espera de encontros, a espera de acontecimentos, atentos à geografia não só física, mas também virtual: atento aos fluxos e possíveis agenciamentos; atentos a todos os processos moleculares e a todo o brilho dos cristais singulares. Estamos prontos para traçarmos nossas cartografias.

POIS QUE CAGUEM!

BIBLIOGRAFIA:

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BUKOWSKI, Charles. Notas de um velho safado.  Porto Alegre: L&PM, 2000.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática.  São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs v. 3: capitalismo e esquizofrenia 2. Rio de Janeiro: 34, 1996.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico Político: Prefácio. Disponível em: <http://www.consciencia.org/espinosatratado.shtml>. Acesso em: 18 abr. 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da tragédia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.



RESUMO
Artaud: Corpo sem Órgãos e Prática de Liberdade
Uma dissertação em cima do Corpo sem Órgãos de Antonin Artaud – a partir de Deleuze & Guattari, Espinosa e Nietzsche – para poder se pensar em práticas de liberdade, de resistência e de criação. Uma análise ética, uma formação estética, uma prática política através de uma crítica às “Filosofias de Estado” e aos Estados-filosofia. Pela esquizoanálise dá-se atenção a localizar os fluxos de poder e assim estabelecer possíveis linhas de fuga, novos agenciamentos, novas relações, novos modos de existência e possibilidades de vida.

Palavra-Chave: 1 – Artaud, Antonin; 2 - Deleuze, Gilles; 3 – Espinosa, Baruch de; 4 – Ética; 5 – Liberdade; 6 – Multiplicidades; 7 – Corpo sem Órgãos; 8 – Nomadismo; 9 – Esquizoanálise.

ABSTRACT
Artaud: Body without Organs and Freedom Practices
A dissertation about Antonin Artaud’s “body without organs” – along with Deleuze & Guattari, Espinosa and Nietzsche – to think in practices of freedom, resistance and creation. An ethical analysis, a forming aesthetics, a political practice through the criticism of the "Philosophy of State" and the States-philosophy. From schizoanalysis, it gives attention on locating the flows of power and thereby establish possible lines of escape, new agencies, new relationships, new modes of existence and possibilities of life.

Keyword: 1 – Artaud, Antonin; 2 – Deleuze, Gilles; 3 – Espinosa, Baruch de; 4 – Ethics; 5 – Freedom; 6 – Multiplicities; 7 –Body without Organs; 8 - Nommadism; 9 – Schizoanalysis.


[1] Palestra conferida em primeira versão para o grupo de teatro “Cia Esquizocênicas” no começo de 2007.
[2] Graduando em Filosofia pela USP desde 2007; graduando em Relações Internacionais pela FASM desde 2005.
[3] In: Eu Antonin Artaud. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena, 1988, p. 111
[4] In: Escritos de Antonin Artaud. Trad. Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1983, p.161.
[5] In: O Anti-édipo. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 30.
[6] In: O Anti-édipo. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 17.
[7] In: Eu Antonin Artaud. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena, 1988, pp. 76 e 79.