ARTAUD: CORPO SEM
ÓRGÃOS E PRÁTICA DE LIBERDADE[1]
Guilherme Giuliano
Nicolau[2]
Quando me chamaram aqui para dar uma palestra, pensei: “O que eu, um
garoto de 19 anos, tenho para dizer? Como dizer? Ainda tenho tanto a
aprender!”. Um medo tomou posse. O medo de chorar, de gaguejar, força da mais
patética, força da qual rimos; o choro edipianizado da busca pela mamãe, nada
tão anti-Natura, tão patético como o latido de um cachorro.
Depois do medo, percebi que só seria
possível se largasse a tudo: largasse a papai, largasse a mamãe, largasse a
Ego. Ora, eu não sou um garoto de 19 anos, “quem sou eu? De onde venho?” –
Artaud se questionaria isso desde os oito anos de idade e diria:
[...]
Eu sou Antonin Artaud
E basta dizê-lo,
Como sei dizê-lo,
Imediatamente
Vereis o meu corpo atual
Voarem estilhaços
E em dois mil aspectos notórios
Refazer
Um novo corpo
Onde nunca mais
Podereis
Esquecer-me.
E basta dizê-lo,
Como sei dizê-lo,
Imediatamente
Vereis o meu corpo atual
Voar
E
Refazer
Um novo corpo
Onde nunca mais
Podereis
Esquecer-me.
Não poderia entrar aqui sem que largasse a tudo e a toda
essa mesquinharia burguesa; eu disse, disse que era capaz, caso não conseguisse
seguir uma estrutura lógica de uma palestra, disse que era bem capaz de berrar,
de me cortar, de tirar a roupa e cagar, na frente de todo o público; depois,
pegaria um quadro original de Picasso e rasgá-lo-ia, enfiando o seu interior,
em um movimento de cima para baixo, na cabeça de alguém – como em um filme dos
Irmãos Marx – e agora, acompanhado de uma risada não tão infantil, mas a risada
paranóica de um conto de Edgar Allan Poe. Ora, o que é isso? O que é cagar?
Esse ato, como funciona? O que é cagar, o que é foder? Isto choca? O que choca?
Como é que funcionam todos esses corpos que estão sujeitos a valores e
julgamentos? Qual é o seu potencial revolucionário? O Corpo Drogado, o Corpo
Masoquista, o Corpo Esquizo – todos marginalizados na constituição social
ocidental.
Se eu viesse aqui, acendesse um baseado, cheirasse
cocaína, fodesse com minha mãe, com meu pai e com meu tio AO MESMO TEMPO,
bebesse uma pinga barata a ponto de cair no chão, mas resgatar forças do
externo e levantar novamente, me chicotear, me bater, costurar a minha boca,
costurar o cu, rasgar-me de tal maneira que não sobre a nenhum órgão; isto
choca? Ao que choca? REPITO: “VEREIS O MEU CORPO ATUAL, VOAR EM ESTILHAÇOS, E EM DOIS MIL ASPECTOS
NOTÓRIOS, REFAZER, UM NOVO CORPO, ONDE NUNCA MAIS, PODEREIS ESQUECER-ME”. Será
que em um ato tão brutal e bonito como este, do qual torna possível emanar a
vida, ainda é possível se observar a estrutura de um “Eu”, de um “Ego”? Vou
além, será possível encontrar a Édipo, a papai-mamãe? Não há atitude mais
libertária pela vida, pela criatividade, tudo além do Bem e do Mal –
EXTEMPORÂNEO. Talvez não devesse vir aqui e falar, talvez, realmente, deveria vir
aqui e cagar, foder e ainda dizer para a mais mesquinha “A madame me
acompanharia nesta dança? Porra!”.
Artaud diz:
“Escrevo para os Loucos”. Artaud escreve PELOS loucos. O que é escrever? O que
é fazer arte? Não existem devires-escritor. Existem sim, devires-animal.
Escrever é isso: largar a toda essa mesquinharia, não fechar-se aos problemas
do suposto Ego, as contas para pagar, os seus problemas pessoais, etc; escrever
não é contar uma historinha. Escrever é libertar-se de tudo aquilo que te fecha
e te circunda; de tudo aquilo que te constitui, de tudo aquilo que é definido e
conhecido; é libertar-se para o Caos e para a escuridão, para o imprevisível; é
encontrar-se com a imanência Natura, encontrar-se antes da distinção
Homem-Natureza, antes de qualquer distinção, encontrar-se nesse plano imanente
por onde tudo passa, por onde todos os fluxos do desejo passam, por onde tudo
coexiste. Por isso Devir-animal. Por isso Teatro da Crueldade; pois é cruel, é
brutal. Esse Teatro ritualístico e tribal não é nunca místico (no modo transcendente
como se concebe no Ocidente), mas é no tribal que a tudo se rompe, quebra e
rasga, permitindo que todas as afecções, todos os fluxos de vida circulem,
possibilitando o diferente, possibilitando a multiplicidade, possibilitando o
vir-a-ser, possibilitando a Liberdade, a Ética.
CRUELDADE:
[...]
se quiserem, podem meter-me
numa camisa de força
mas não existe coisa mais
inútil que um órgão.
quando tiverem conseguido um
corpo sem órgãos
então o terão libertado dos
seus automatismos
e devolvido sua verdadeira
liberdade.
- ANTONIN ARTAUD[4]
O que é esse Corpo sem Órgãos? Como
ele funciona? Antes de observarmos a esse conceito, retomemos brevemente
Nietzsche, sobre a arte. Em “O Nascimento da Tragédia”, Nietzsche toma uma
dialética entre Apolo e Dionísio. Tracemos rapidamente ela (talvez sem os
aprofundamentos necessários, mas a tomemos brevemente para seguir a cadeia de
razão).
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APOLO: é apresentado por Nietzsche como o deus do sonho,
das formas, das regras, das medidas, dos limites individuais. O apolíneo é a
aparência, a individualidade, o jogo das figuras bem delineadas.
Apolo representa domínio da imagem, da
metáfora, isto é, da dissimulação. Esta categorização identifica a conceptualização
com a aparência. Mas Apolo representa também o equilíbrio, a moderação dos
sentidos e, num certo sentido, a própria civilidade, ou melhor, o modo como
esta é ordinariamente compreendida. A Ordem.
DIONÍSIO: é apresentado como o gênio ou impulso do exagero, da fruição, da
embriaguez extática, do sentido místico do Universo, da libertação dos
instintos. É o deus do vinho, da dança, da música e ao qual as representações
de tragédias eram dedicadas. Dionísio representa, portanto, o irracional, a
quebra das barreiras impostas pela civilização, a dissolução dos limites do
indivíduo e o eterno devir. Dionísio é o princípio metafísico do ser que é
assim, paradoxalmente, compreendido como eterno fluir.
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Claramente Nietzsche dá mais importância a
Dionísio, como princípio de possibilitar a vida. Mas é necessário perceber que
ele não anula Apolo, a entrega total a Dionísio equivale à destruição completa
do indivíduo.
Mas Dionísio foi esquecido durante
séculos, tendo a presença apenas de Apolo, tendo presença apenas da Ordem, da
Univocidade, do Eterno e do Universal. O homem como animal irracional foi
esquecido, agora ele é colocado apenas como esse homem racional, acreditado
evoluído e civilizado, trazendo consigo os sinônimos de Progresso e de Ordem.
Ora! Mas que progresso nós trazemos! Esse Progresso evolucionista de um sistema
de Estados, de racionalização social, que nos domestica o corpo e a alma,
delimitando funções específicas, delimitando o legal e o ilegal, o normal e o
patológico.
É assim, pela Ordem e pelo ideal de
Progresso que trabalhamos com uma ética protestante, para sustentar esse ente
metafísico-inexistente do Estado; ora, mas que Progresso? Aonde queremos
chegar? A Deus? Aonde o Estado quer chegar? Aonde a civilização quer chegar? A
Deus? A vida é ela mesma e isto basta. Não existem evoluções. Ora, somos tão
evoluídos com nossos ternos e gravatas, somos tão diferente dos animais, não
somos? Saiba se portar na mesa, pois você não é um bárbaro. Saiba andar e agir
corretamente, você não é um selvagem. Quando somos reduzidos à valores sociais,
aonde há espaço para a vida? Quando define-se um processo subjetivo de
individualização, de sujeições de corpos dóceis que passam a ser fonte de saber
para todo o olhar dos poderes especialistas, que esquadrinham e categorizam, em
um estado quase policial: aonde há espaço para a vida?
Nietzsche resgata toda uma genealogia da
moral, para mostrar que desde o pensamento socrático estamos condenados à essa
situação. Sócrates, aquele chato que queria dizer mais da vida dos outros do
que eles mesmos; para Sócrates ninguém pode conceber suas próprias perspecções
de amizade, amor, nem de nada; para Sócrates existe apenas UM Amor, UMA Amizade
e, que só pode ser conhecida racionalmente; Sócrates não é tão ingênuo quando
diz “Só sei que nada sei”. Ele garante assim uma autoridade do saber que só
pode ser conhecido racionalmente (e aquele que nega a razão, está condenado a
permanecer na caverna); é uma autoridade do saber científico racional, único
legítimo; autoridade da Ordem; algo que continuará durante todo o período
Escolástico, continuará no pensamento moderno com Descartes, continuará no
Idealismo Alemão.
Ora, mas que racionalidade é essa, que em
seu extremo culmina em duas Guerras
Mundiais das mais brutais, onde, no campo de guerra ocorrem
mortes por mortes das mais medíocres?
Aquele que é condenado a permanecer na
caverna é o ignorante, o insipiente, o louco; a partir daí não se interromperá
de codificar a todas as coisas e, a todos esses (o louco, o delinqüente);
apropria-se de suas imagens, marginalizando-os, isolando-os: como ícones que
definirão o legal e o ilegal, o normal e o patológico. Pois é necessário definir a isso, afinal, “Quem suportaria ou
respeitaria a estes sujeitos fardados (com a bata, o diploma, ou o distintivo)
que nos param para pedir os nossos documentos e nos vigiam o tempo todo se não
fosse a atuação deles em relação ao crime?”.
Não há nada mais racional que Mussolini,
Hitler e Stálin: racionalização social; fascismo de Estado. Mas existem
Mussolinis, Hitlers, Stálins desde sempre, microfascismos cotidianos que nos
oprimem, micropoderes autoritários, articulados através de inúmeras
instituições hierárquicas que nos julgam e punem. Todas com suas redes de
poder, com fluxos que transpassam todas as vidas, com Discursos que impõe a sua
própria Verdade Absoluta. É contra todo esse fascismo moral que Nietzsche
escreve, dizendo que “só como fenómeno
estético se vê legitimada a
existência do mundo”. A vida é ela mesma e isso basta, O Eterno Retorno.
Só dessa maneira a vida poderia fluir, com o devir, além do Bem e do Mal, além
da Moral. Cito Deleuze:
Eis porque o problema fundamental da filosofia
política permanece aquele que Spinoza soube colocar: “Por que os homens
combatem pela sua servidão como se fosse sua salvação?” Como se chega a gritar:
ainda mais impostos! Menos pão! Como diz Reich, o espantoso não é que pessoas
roubem, que outros façam greve, mas antes que os famintos não roubem sempre e
que os explorados não façam sempre greve: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a ponto de querer isso, não apenas para os
outros mas para si próprios? Nunca Reich foi maior pensador do que quando
recusa invocar um desconhecimento ou uma ilusão das massas para explicar o
fascismo, e pede uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as
massas não foram enganadas, mas desejaram o fascismo nesse momento, nessas
circunstâncias, e é isso que é preciso explicar, essa perversão do desejo
gregário. (DELEUZE&GUATTARI. 1976, pp. 46 e 47)
Ora, como desejamos a nossa servidão? Como
desejamos nos submeter ao padre, ao psicanalista, ao policial, ao médico? Como
desejamos nos submeter à Igreja e à Religião, à Família, ao Estado e toda a sua
estrutura hierárquica, à todas as Insituições? Como nos submetemos aos
discursos, como obedecemos às codificações? Como passamos a crer em um
livre-arbítrio individualizado em cada corpo, em cada Ego e esquecemos as
determinações do Cosmos?
Espinosa, semelhante a Nietzsche,
trabalhará em cima da Ética, para propor a Liberdade subjetiva. Distingue ele a
Moral e a Ética; nega-se um Deus moral, criador e transcendente e propõe-se
“Deus sive Natura” (Deus ou Natureza): sendo todas as “criaturas” apenas modos
desses atributos ou modificações dessa substância (imanência). Os homens
ignorantes das causas e das naturezas – das composições e decomposições, das
relações entre todos os corpos e mentes, de todos os fluxos que transpassam a
todos e a todas as vidas, compostos de uma única substância –, os homens
reduzidos à consciência do acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei
lhes escapa, são eles escravos de qualquer coisa, angustiados e infelizes, na
medida de sua imperfeição.
Espinosa, o materialista, pretende com
isso se contrapor com o pensamento cartesiano, o princípio tradicional em que
se fundava a Moral como empreendimento de dominação das paixões pela
consciência: quando o corpo agia, a alma padecia, dizia-se, e a alma não atuava
sem que o corpo padecesse por sua vez.. Mas, para Espinosa, ao contrário: o que
é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo
é por sua vez necessariamente paixão na alma.
[...] mas nós nem sequer
sabemos de que é capaz um corpo. Porque não o sabemos, tagarelamos. Como dirá
Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas “o que surpreende é, acima
de tudo, o corpo... (DELEUZE. 2002, pp. 23 e 24)
É uma provocação; é uma atenção ao corpo
que, tanto como Nietzsche, como Bataille, como Foucault estariam sempre
atentos. Para Espinosa, a consciência é uma ilusão; ela não é nunca uma causa
final, é apenas a percepção dos efeitos de um Todo; “a consciência é puramente
transitiva. Mas ela não é uma propriedade do Todo, nem de nenhum todo em
particular; ela apenas tem um valor informativo, e de uma informação ainda
necessariamente confusa e mutilada” ((DELEUZE. 2002, p. 25). É necessarário que
a própria consciência tenha uma causa.
Aqueles que negam o sumo bem, desconhecem
a imanência, e tomam pela consciência os efeitos como causas, invocará o seu
poder sobre o corpo (ilusão dos decretos livres). “Nos casos em que a
consciência não pode imaginar-se causa primeira, nem organizadora dos fins,
invoca um Deus dotado de entendimento e de vontade, operando por causas finais
ou decretos livres, para preparar para o homem um mundo na medida de sua glória
e dos seus castigos (ilusão teológica). Não basta sequer dizer que a
consciência gera ilusões: ela é inseparável da tripla ilusão que a constitui,
ilusão de finalidade, ilusão de liberdade, ilusão teológica. A consciência é
apenas um sonho de olhos abertos. “É assim que uma criancinha julga apetecer
livremente o leite; um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um
homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta
aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferia ter calado” (DELEUZE.
2002, p. 26). Ignora-se a definição pelo diferente.
Nietszche diz “para além do Bem e do Mal
ao menos não significa para além do bom e do mau”. Deleuze, sobre Espinosa,
dirá dois modos de existência do homem:
[...]
será dito bom (ou livre, ou razoável, ou forte) aquele que se esforça, tanto
quanto pode, por organizar os encontros, por se unir ao que convém à sua
natureza, por compor a sua relação com as relações combináveis e, por esse
meio, aumentar sua potência. Pois a bondade tem a ver com o dinamismo, a
potência e a composição de potências. Dir-se-á mau, ou escravo, ou fraco, ou
insensato, aquele que vive ao acaso dos encontros, que se contenta em sofrer as
conseqüencias, pronto a gemer e a acusar toda vez que o efeito sofrido se mostra contrário e lhe
revela a sua própria impotência. É que, à força de encontrar
indiscriminadamente qualquer coisa, seja sob que relação for, julgando que
sempre nos sairemos bem à custa de muita violência ou um pouco de astúcia, como
não fazer mais encontros maus do que bons? Como evitar que nos destruamos a nós
mesmos, à força de culpabilidade, e destruamos os outros à força de
ressentimento, propagando por toda parte a nosa própria impotência e a nossa
própria escravidão, a nossa própria doença, as nossas próprias indigestões, as
nossas toxinas e venenos? Acabaremos por não mais encontrar sequer a nós mesmo.
(DELEUZE. 2002, p. 29)
A moral é o julgamento de Deus, o sistema
de Julgamento (expresso pelo padre, pelo psicanalista, pelo policial, pelo
jurista; fluxos de poder que se articulam através de suas Instituições e do
Estado). “Mas a Ética desarticula o sistema do julgamento. A oposição dos
valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de
existência (bom/mau)” (DELEUZE, 2002, p. 29). Portanto, aquele que não compreende
a Natureza, a imanência, e toma a consciência como causa, passa a moralizar e
se submete a um “Deve-se”.
A lei moral é um dever, a obediência é o
seu único efeito e a sua única finalidade. A lei, moral ou social, não nos traz
conhecimento algum, não dá nada a conhecer; impede a formação de conhecimento
(a lei do tirano). Existe uma diferença de natureza entre a Ética e a Moral. A
Moral, uma relação de mandamento-obediência, a Ética a relação entre
conhecido-conhecimento. “A lei é sempre a instância transcendente que determina
a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente
que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau”. (DELEUZE.
2002, p. 30)
Pois então pelo desconhecimento da
Natureza e tomados pela Moral, os homens buscam as coisas fúteis como fim;
buscam a honra, a fortuna, a concupisciência, a segurança. “A verdadeira cidade
propõe aos cidadãos o amor da liberdade de preferência à esperança das
recompensas ou mesmo a segurança dos bens; pois “é aos escravos, não aos homens
livres que damos recompensas por boa conduta” (DELEUZE. 2002, p. 32). Os
homens, tomados pelo medo de perder o que tem e pela esperança de obter coisas
efêmeras, tomam-se de um moralismo supersticioso que os tornam escravos. O
escravo, o tirano e o padre: trindade moralista. “O grande segredo do regime
monárquico e seu profundo interesse consistem em enganar os homens,
dissimulado, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de
forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação” (ESPINOSA,
1670). Mas o sumo bem é o certo; Espinosa o encontra quando perde a tudo e
passa a polir lentes; a filosofia, a arte de polir lentes, como modo de
enxergar a natureza, do conhecimento da imanência; assim se observa mais
cuidadosamente essas figuras terceiras (padre, psicanalista) que ditam
verdades; assim como imagens terceiras, como Édipo.
E, é dessa maneira, que Deleuze sustenta:
“Finalmente, o grande livro sobre o corpo sem órgãos não seria a Ética (de
Espinosa)?” (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p. 13). Artaud era em si um Corpo
sem Órgãos; um Corpo sem Órgãos em prática, a sua arte era também a sua vida, a
sua arte era política e essencialmente revolucionária. Artaud, o momo, o louco, o
improdutivo à sociedade Moderna racionalizadora
de funções sociais aos indivíduos, com o objetivo de garantir esse sistema
ocidental de Estados-Nação: um Imenso Transcendental, ilocalizável e insondável
a qual todos desejam por se fazerem escravos ao desconhecerem a imanência e
seus infinitos atributos. É esse mesmo Artaud, inconformado com a escravidão e
ignorância dos homens que tomam a ilusão da consciência como causa final,
inconformado com o delírio da sociedade, que, ele, vai à busca dos desejos, na
imanência, buscando as afecções alegres, evitando os venenos e as afecções
tristes, buscando a Alegria, a Felicidade e a Liberdade.
Eu
não creio a nem pai
nem mãe
E não tenho
a papai-mamãe
nem mãe
E não tenho
a papai-mamãe
- GILLES DELEUZE E FÉLIX
GUATTARI[5]
Artaud, um maldito (como
Bataille, Nietzsche, Heráclito, Espinosa, Caroll), possui um pensamento nômade
antiautoritário, antifascista. Buscando a sua liberdade e seu devir-animal na
Crueldade, ele declara guerra à Cultura (declara guerra às obras-primas, ao que
é ordenado e já codificado, exposto em um museu e que a nada diz aos famintos,
nada diz PELOS famintos); declara assim, guerra a todo o conceito de
Modernidade e de Progresso evolucionista, declara guerra ao Estado, a tudo que
é transcendente, à psicanálise e à psiquiatria; Artaud se nega adentrar no jogo
das verdades e constitui a Crueldade como estratégia e forma de resistência.
Buscar a Crueldade é buscar a imanência. Buscar a produção (do diferente) no
improdutivo. Busca-se a Criação no Caos e não numa ordem evolucionista ou numa
relação dialética de síntese hegeliana que busca o Perfeito (e o Verdadeiro).
Produzir o improdutivo, produzir o Corpo sem Órgãos é produzir algo contra toda
essa triangulação que impossibilita a vida, a multiplicidade e a Diferença,
impossibilita a potência da vida, suas intensidades, suas afecções alegres.
É nesse aspecto
revolucionário de semelhança esquizo (como Homo
Natura, buscando na imanência os seus desejos), que ele declara guerra às
Instituições, principalmente à Família (pois a primária). Instituições estas,
transcendentes; instituições regidas por uma moral dita Eterna e Universal,
dogmática (semelhança indesejável com o Cristianismo). Ele declara uma guerra
ética, contra o saber e seu discurso científico. Declara guerra ao positivismo
e a todo o programa e controle que garante a sociedade moderna racionalizada
(do qual a psicanálise, a psiquiatria, a sociologia e a ciência em si são
forças essenciais). Declara guerra ao ”Deve-se”, indo para além do Bem e do
Mal, polindo as lentes de ver o mundo, para só assim observar aquilo que é bom
e aquilo que é mau, aquilo que se compõe com afecções alegres e aquilo que é
veneno. Artaud é perigoso, é subversivo. Conseqüentemente, acaba internado em
hospitais psiquiátricos, entre terapias de choque que tentam domesticá-lo,
infantilizá-lo (como se faz com os animais e as sábias e sinceras crianças) diante
de papai-mamãe-ego.
Curiosamente, o teatro psicanalítico parece primeiramente
nos libertar, para em seguida nos aprisionar novamente dentro do segredo sujo
da família burguesa; mas Artaud
sabe como funciona o inconsciente: não como teatro, mas como indústria. O
inconsciente como produção. Pois tudo é produção, produz-se inclusive o
improdutivo. E é isso que faz Artaud ao declarar e viver a Crueldade, cria para
si um Corpo sem Órgãos; ele se sente pressionado, assim como Van Gogh. O
organismo e tudo que aquilo que é constituído, o sufoca; ele precisa buscar a
vida, pois está se afogando e, assim ele cria uma máquina de guerra: a
Crueldade, o Corpo sem Órgãos. Uma máquina de guerra tão brutal que possa
destruir a tudo que ofusque sua visão; Artaud passa a polir as lentes de ver o
mundo junto com Espinosa e junto ao pincel de Van Gogh; busca destruir a tudo
aquilo que é triangulizado, para se chegar à vida, à imanência, à natureza como
processo de produção. Artaud quer libertar os órgãos de seus automatismos e
possibilitar novamente a produção desejante como código binário de acoplamentos
(teta-boca, pinto-boceta). A natureza é simples: teta-boca, pinto-boceta; Connect-i-cut. A natureza é produção,
tudo é produção. Não é nunca um teatro, um mito, com uma moral e com
personagens como o Édipo, o padre, o psicanalista, o policial. A natureza é um
processo de produção binária, de acoplamentos, teta-boca; e esse terceiro que
sempre tenta surgir com sua verdade, discursos e abstração complexa, é o
autoritário, é a origem dos micro-fascismos.
INCONSCIENTE MAQUÍNICO:
O
corpo sob a pele é uma usina superaquecida
E
fora,
O
doente brilha,
Irradia,
Por
todo os seus poros,
Estourados.
Assim como o esquizofrênico,
Artaud tenta se colocar antes da distinção homem-natureza, antes de qualquer
distinção; O passeio esquizofrênico:
[...] é
diferente dos momentos que Lenz se encontra na casa do seu bom pastor, que o
força a situar-se socialmente, em relação ao Deus da religião, em relação ao
pai à mãe. Lá, ao contrário, ele está nas montanhas, sob a neve, com outros
deuses ou sem deus algum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. “Que
quer meu pai? Ele pode dar-me mais? Impossível. Deixem-me em paz.” Tudo feito
máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpinas, que se acoplam
com as de seu corpo. Ruído ininterrupto de máquinas. “Ele pensava que deveria
ser um sentimento de infinita beatitude ser tocado pela vida profunda de toda
forma, ter uma alma para as pedras, os metais, a água, e as plantas, acolher
dentro de si todos os objetos da natureza, sonhadoramente, como as flores
absorver o ar com o crescer e o decrescer da lua.” Ser uma máquina clorofílica,
ou de fotossíntese, pelo menos insinuar seu corpo como uma peça em máquinas
assim. Lenz se colocou antes da distinção homem-natureza, antes de todas as
marcações que esta distinção condiciona. Ele não vive a natureza como natureza,
mas a natureza como processo de produção. Não há mais nem homem nem natureza,
mas apenas o processo que produz um no outro e acopla as máquinas. Em toda
parte, máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a
vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não querem dizer mais nada. (DELEUZE&GUATTARI.
1976, p.16)
O inconsciente é maquínico,
funciona como indústria, como produção desejante. Ele não é individual, mas
coletivo, funciona através de acoplamentos de peças que coexistem (uma não
existiria sem a outra), engrenagens que escoam a produção para outras peças que
se acoplarão, em um processo esquizofrênico, sem começo nem fim, sem estruturas
e nem linearidades, mas como rizoma, com intensidades. O inconsciente imanente,
onde tudo coexiste e é fruto da mesma substância, variando apenas os modos,
como Espinosa demonstra – é este que se deve conhecer.
Corpo sem Órgãos: Sendo a natureza como
processo de produção, o esquizofrênico (longe de se estabelecer um pólo
naturalista) é aquele que se encontra antes da distinção homem-natureza,
natureza-indústria e, reconhece o processo de produção de desejos além das
fibras, com seus fluxos e afectos. Processo este, que deve tender ao seu
próprio fim e não a uma terrível intensificação que nos consome o corpo e a
alma. Não existem nunca unidades isoladas e transcendentes que se definem por
si só, mas tudo está relacionado em uma rede demasiadamente complexa que se
desliza no plano imanente da produção, se desliza no Corpo sem Órgãos. Não
existem vespas e margaridas; mas existem devir-vespa e devir-margarida; “a
vespa pensa que é margarida” – a verdade que jaz no delírio.
É assim que Deleuze propõe
substituir o estudo da biologia pela etologia; a biologia, mesmo quando tenta
escapar do calabouço evolucionista, tende a dar mais atenção aos seres de
sistema complexo, do que aos seres simples – o classificação dos seres vivos
credita o aperfeiçoamento dos sistemas biológicos, tendo como início os seres
simples e concluindo em sres complexos (da ameba ao mamífero).
A etologia, vê a beleza da
funcionalidade de um ser simples como o carrapato, capaz de um único devir,
ficando anos esperando a presença de calor animal para cumprir seu objetivo (e
em poucos dias estará morto), o que significa isso? É a potência da natureza
por si só, sem intromissões metafísicas, ou mesquinharia de comportamentos
familiares, comuns ao mamífero – é isso que significa quando Deleuze diz que
não gosta de cachorros, tampouco gatos, não gosta do miado, do latido, do
ronron, do carinho, da dependência para suas necessidades fisiológicas, animais
domésticos e domesticados que se comportam como um humano cristão e fazem parte
da sua estrutura familiar, tudo tão semelhante com u mrebanho, pacífico,
desprotegido, sem defesas, tão passivo como uma vaca (o ícone dos mamíferos);
não é apenas uma questão de gosto, é uma opção filosófica sensata. Podemos ir
além e dizermos que na etologia, dois animais de mesma espécie biológica podem
ser completamente distintos em seu comportamento, em seu devir, até
contraditórios e em conflito, constituindo-se como mônadas, ou sistemas
próprios que lutam cotidianamente por constituir-se como tal dentro de outro
sistema mais amplo que é sua verdadeira fonte ao mesmo tempo em que luta por
destruir o sistema e constituí-lo novamente. Lembremos do caso do cavalo,
explicitado por Deleuze: um simples cavalo de tração é domesticado para um
único devir: servir o homem pela tração, se tornar ferramenta humana;
completamente diferente de um cavalo selvagem, da potência simultaneamente
criadora e destruidora, acima de tudo incontrolável. Não é incomum termos
relatos como os de Lenz, Nietzsche, Artaud, pela indignação do controle de um
cavalo, ou simplesmente pelo trator do cavalo como vontade de potência que os
persegue, indecisão entre compreender e aceitar, reprimir ou domesticar, ou
simplesmente abrir-se completamente aos fluxos do Crepúsculo dos Deuses, na
possibilidade de rasgar-se, mutilar-se, e no sofrimento refazer-se novamente
como um novo Corpo livre, um Super-Homem.
E é isso que Nietzsche quer
dizer ao fazer-se Super-Homem: é um modo de vida livre, adequado a natureza, longe
do medo de sua crueldade criadora, é estar ao lado do cavalo selvagem e não
viver como um cavalo de tração, domado pela civilização que tomou Roma ao
agenciar Platão, a culpa judaico-cristã e a tecnologia de violência dos
bárbaros. A noção de honra da Idade Média nada mais representa do que esse
mundo domesticado por genocídios, que inclusive lutou por domesticar a usura e
a economia, mundo do qual tem medo de desfazer-se por completo e apenas
administra sua desterritorialização esquecendo de conceder a liberdade de criar
a outro; aquele que vai um pouco além, como Van Gogh, é louco. Nietzsche foi
considerado louco após o incidente com o cavalo em Turim (apesar de sabermos da
possibilidade de sífilis ou câncer no cérebro); Van Gogh deu a liberdade que qualquer
um poderia se dar, de ser tocado todas as manhãs por crepúsculos maravilhosos,
e se sentia pressionado todos os dias pelos corvos da civilização; Artaud,
destrui-se diversas vezes, deslocou-se até o México para encontrar-se com
índios em experiências psicodélicas junto aos Deuses da Natureza, mas numa
maneira de eternamente destruir-se e renovar-se, em um sistema que não é
metafísico – criou um modo de vida particular, andando com o cajado de Cristo,
amuletos e anéis, como verdadeira esponja de diferenças, e assim como todos,
chamou a atenção e foi internado para um processo de cura.
A cura, desse ponto de vista
civilizatório, pode ser possível: também os humanos podem ser domesticados, e a
psiquiatria e psicanálise serão eficientes nisso: em substituir a falência de
outras referências (Deus, o Estado, o Rei) e encontrar um novo ponto
transcendente (o pai, a mãe) onde o louco poderá assentar-se e viver
corretamente; mas ás vezes não é possível: acaba no internamento, na medicação,
eletrochoques, lobotomia, acabam em estado catatônico – práticas que devido ao
movimento anti-psiquiátrico cessaram, mas nunca deixar de estar presentes como
um desejo paranóico do saber médico.
Mas sínteses atrás de
sínteses, a síntese conjuntiva psicanalítica refere-se a um mundo capitalista
desterritorializado por excelência, e é apenas repetição e reprodução de
sínteses disjuntivas de épocas anteriores: ela funciona como grande potência
útil para expansão do capitalismo em si mesmo, e nunca para seu fim; domestica
a potência esquizofrência por conjunções úteis a reprodução do capital e a
sobrevida do capitalismo (já não quer mais limitar a reprodução como na Idade Média); mas como uma fita
cassete que é regravada várias vezes, cada vez mais o teatro psicanílitico
revela-se como farsa, assim como o sistema capitalista parece exaurir-se (desse
ponto de vista, a semelhança com o marxismo é evidente).
O agenciamente do sistema
capitalista a psicanálise e a família, é forma de reproduzirmos o sistema já
esgotado que vivemos, ampliá-lo ad
infinitum, impossibilitando a liberdade de criação em um mundo que apenas
joga com desterritorializações (sínteses conectivas de sociedades primitivas) e
territorializações (sínteses disjuntivas do Urstutt, das instituições modernas):
seria isso a síntese conjuntiva, uma verdadeira farsa que joga ao reproduzir
pontualmente histórias anteriores a seu serviço, mesmo que seja contraditório
(assim, o capitalismo é por essência de contradição e conflito: joga-se, por
exemplo, com o confronto de capitalistas e proletários, para sua própria
expansão – ambos, capitalistas e proletários, são escravos e senhores do
sistema). É como dizer que o capitalismo joga entre o estatismo e o
livre-mercado para manter-se (são os cliclos do capitalismo), e acreditamos que
o seu fim é o esgotamento ipsu facto;
mas esse é um ponto de vista econômico, com base no materialismo clássico (“são
as estruturas que determinam a superestrutura, são as condições materiais que
determinam o espírito, a ideologia e a esfera imaterial são apenas formas de
garantir a conjuntura econômica”). Do ponto de vista da esquizoanálise, o
processo insiste em não ter fim, e ampliar-se mais e mais, tornando as
contradições sua verdadeira potência através da excelência em administrá-la: o
capitalismo sempre esteve em crise, e quanto pior ela é, maior o capitalismo
será. E administração se dá em espírito de ação, ideologia ativa, ou
dispositivo de poder (como Foucault prefere denominar), que coloca um terceiro
elemento transcendental no processo: assim, a esquizoanálise consiste em
fornecer um método construtivista que coloca a economia e a ideologia em um
mesmo plano, sem hierarquias, que pode ser chamado de Economia do Desejo; por
isso diz-se que é o materialismo por excelência.
Dessa forma, a URSS também
fazia parte do mesmo sistema capitalista (capitalismo de Estado), e o
compreendia como ninguém, conseguindo modernizar-se forçadamente em poucas
décadas, através do racionalismo burocrático, do centralismo estatal, do
unipartidarismo e do autoritarismo violento. A URSS preferia o ensino da
disciplina pelo trabalho forçado (a ode ao trabalho – instrumento de tortura
que nos faz escravos e senhores de nós mesmos) do que o genocídio, mesmo que
isso também significasse muitas mortes. Mas fracassou ao não conseguir jogar,
como o cinismo do capitalismo ocidental, com o estatismo e o livre-mercado,
assim como o autoritarismo e a liberdade, para administrar o seu sistema
expansivo; seria como um sistema bipolar, que apesar dos lados se confrontarem
e negarem-se, eles se fortalecem em equilibrio (as vezes bem desequilibrado)
para sustentar o sistema. Qualquer um dos lados não quer morrer, e para isso,
prefere que o outro não morra: é nisso que consiste o cinismo da
contemporaneidade.
E isso significa que o fim na
URSS ou o fim da hegemonia americana não daria fim ao processo, e essa foi a
nossa grande ilusão. Com o fim na URSS, expandiu-se ainda muito mais, fomos da
sociedade disciplinar a uma sociedade controle, com novas capturas e uma
administração ainda mais eficiente: modular, ininterrupta, híbrida, fora das
instituições (da prisão, da escola, do Estado), talvez já até fora da família
(se está na família por fora da família), informatizada, em rede. Cada vez mais
a seu limite exmpandido por administração, cada vez mais semelhante a esquizofrenia,
mas administrada pelo cinismo. E também é nisso que devemos tomar cuidado: em
domar a potência com o objetivo de administração do sistema.
O design, a publicidade, a
moda, a empresa contemporânea e seus recursos humanos flexíveis em busca de
funcionários-bohêmios-mas-profissionais-criativos-artistas-mas-funcionais-felizes-mas-críticos-cultos-mas-fúteis,
o mercado financeiro, o modo de produção toyotista, todos pareceram conseguir
adequar-se muito bem ao mundo pós-68, as suas revidincações e seus modos de
vida, incorporando-os e capturando-os, dando um novo fôlego ao sistema, ainda
que seja muito mais contraditório e conflituoso; até mesmo artistas malditos
são adaptados ao meio e seus processos criativos violentos são pacificados para
fins úteis do desejo de consumo. O mundo hoje tem enorme espaço para o artista
profissional, portador da técnica (cada vez mais desnecessária pelas
ferramenteas eletrônicas), porém acima de tudo é o artista que experimentou o
suficiente na sua formação para ser um profissional da razão criativa, um
grande conhecedor do processo criativo, de maneira a aplicá-lo para um fim útil
em retorno de capital (econômico, social, intelectual ou cultural): temos como
exemplo os magníficos designs e plataformas interativas dos produtos da Apple,
fetiche do consumo que movimenta bilhões como uma das maiores marcas do
mercado, para fins de entretenimento ou informação, movimentando mais capital
que o setor industrial e material por excelência.
Isso significa dizer que o
mundo que vivemos já percebeu que a produção e a criação está longe de se
concentrar na indústria e na ciência, podendo haver enorme reprodução de
Capital na criatividade e nos serviços voltados ao consumo do sonho que vende:
a liberdade pela interatividade, a diferença pelas escolhas oferecidas de
produtos minóricos. Ou seja, vínculos de produção aos distintos modos de vida
urbano que compram apenas metade da liberdade, compram processos incompletos,
processos semi-úteis, work-in-progress para utilidade, processos semi-criativos
de uma zonamodular de indistinção que trouxe retornos favoráveis a acumulação e
reprodução do sistema, seja em economia, seja em desejos – percebeu-se que a
diversidade é um ótimo negócios. Basta reconhecer, que depois de 68, o grande
passo, ainda não reconhecido, para essa sociedade foi o colapso da URSS, e a
necessária impulsão para novos limites dos desejos vigilados. E por isso,
também devemos tomar cuidado de não cair nessa armadilha ao utilizarmos as
ferramentas conceituais da esquizoanálise.
Seja dito que, a sociedade do
trabalho, o mundo pós-moderno, o capitalismo avançado, as sociedades
pós-catastróficas do Leste Europeu revelam o mundo que vivemos e terá seu
momento “grandioso” apenas no século XXI, e não em fins do século XX. O fim,
portanto, só aconteceria com outro tipo de revolução, não apenas material, mas
o que Guatarri chamou de revolução molecular, ou seja, uma nova maneira de
pensar e viver: e não ter medo de viver, não ter medo de dar um fim. Em certo
sentido, Marx até estaria certo, que a evolução do capitalismo revelaria suas
contradições, e seu fim seria insustentável. Conforme avance mais, as
contradições são mais evidentes: mas somos nós, na maneira como nos concebemos
que podemos dar fim ao processo e temos medo, só nos resta as optar por isso ou
pela barbárie; enquanto nos decidirmos por apenas homens, e não super-homens –
por mais ridículo que esse nome possa parecer hoje – só nos restará a barbárie,
e o ignorado fim da humanidade que, algum dia, deverá chegar de facto (em
tempos geológicos). Vivemos em um mundo em que processos de
desterritorialização e de territorialização são sempre incompletos, meras
ferramentas de um sistema que as monopoliza apenas para fins úteis a sua
sobrevivência. E cada vez mais, ela se revela como farsa: passamos da criação
do carro (e suas implicações) para a semi-importância do consumo de um bem,
como o Ipod.
Devemos então, compreender e
vivenciar o processo esquizofrênico com criatividade, e sem medo de dar fim do
processo criado a séculos e que temos medo de matar definitivamente para criar
o novo, para construirmos novamente. Devemos nos utilizar da potência do
processo criativo para construir para nós um novo ponto de territorialidade de
facto, um novo espaço de liberdade e de intensidades, novas práticas e novos
modos de vida, e resistir a capturação pela utilidade, como a pura resistência
do ato de criar se propõe, a liberdade da violência pura. Diferente do design,
seria como construir uma mesa esquizofrênica: com pernas não-alinhadas, com
ausência de pernas, pernas para cima e para o lado, pesos e medidas não
balanceadas geometricamente, uma mesa não-eficiente, mas uma máquina de
criatividade funcional para o choque. Criarmos nossa pequena máquina com nosso
corpo, pedras, casaco e bolsos, transferindo da boca para os bolsos, para o cu
e para os ombros, de maneira que sempre tenha uma outra peça sobreçalente que
nos obrigue a movimentar de novo, fechando o sistema de boca, bolso e pedra,
capaz de se reabastecer no próprio movimento inútil, na produção do vazio que
nos falta, na produção do improdutivo que nos falta.
Vale reafirmar que isso não
significa que o esquizofrênico não sofra, não deva ser medicado, não deva ser
ajudado (não se quer romanticizar uma doença). E queremos dizer que não falamos
do esquizofrênico em si, esquizfrênico como entidade clínica. Falamos dessa
potência, que pode desnaturalizar-se do indivíduo, mas potência que está
presente nos delírios de um esquizofrência. Ao desnaturalizar, Deleuze &
Guatarri preferem chamar esse universo de Esquizofrenia, universo que faz parte
da história da filosofia e foi substituído por termos modernos (o que pode dar
possibilidades para más interpretações e críticas precoces), o estudo desse
universo eles chamam de Esquizoanálise; inclusive a História Universal pode ser
estudada de um ponto de vista esquizoanalítico, como feito em seu clássico O
Anti-Édipo.
Cito Deleuze: "As
máquinas desejantes nos fazem um organismo; mas dentro desta produção, na sua
própria produção [de produção], o corpo sofre por estar organizado assim, por
não ter outra organização, ou organização alguma" (DELEUZE&GUATTARI.
1976, p. 22). É aí que surge, no processo, o Corpo pleno sem Órgãos, como o
"improdutível". Pois o desejo também deseja a morte e é com o Corpo
sem Órgãos que isso se dá. O Corpo sem Órgãos é perpetuamente reinjetado na
produção, é antiprodução e, é ainda uma característica desse processo acoplar a
produção à antiprodução. É uma etapa fundamental para o desencadear do processo
que sempre se renova, vem-a-ser, devém.
É como o narrador-máquina da Recherche de Proust: um Corpo Vazio que
lamenta a falta de órgãos pelo ciúmes sentido a Albertina; um narrador vazio e
incapturável, que se define pelos seus agenciamentos assim como define os
próprios agenciamentos, adaptável, formado e formador das personagens, suas
relações e seu universo psicológico, destruindo-se para recriar-se. O narrador
é esse Insconsciente vazio onde se confunde com as personagens, seus desejos e
vícios, e as próprias relações de desejos muitas vezes vistos como
irreconciliáveis no teatro psicanalítico redutor. No universo proustiano há
etapas da composição à progressiva decomposição das leis do amor e da
sexualidade que se encontra em um universo psicológico democrático. Do amor
intersexual, ao homossexualismo irreconciliável de Charlus e Albertina, “estas
séries, por sua vez, desembocam em um universo transexual onde os sexos
compartimentados, encaixados, se reagrupam em cada um para comunicar com os de
outro segundo vias transversais aberrantes” (DELEUZE, 2006, p.168). Da
normalidade do amor intersexual, passa-se ao segundo nível da neurose edipiana
típica aprisionada nas frustrações de uma psicologia individualizante, chega-se
a um terceiro nível pelo plano do narrador, onde traz-se uma inocência vegetal
de decomposição, introduzindo a loucura no processo como força libertadora e
potência última de transformação e capacidade de agenciamento de tons
aparentemente irreconciliáveis, que dançam no plano vazio do narrador.
Em toda a indistinção do
narrador pelos delírios de Charlus ou de Albertina, as personagens se encontram
em uma relação transversal nesse plano de consistência imanente que é o
narrador – narrador vazio e livre de autoridade, único plano do possível, que
passa por cima de qualquer individualidade imperial – essa “mistura” compõe a
máquina literária de Proust conferindo-lhe um perfil ético revolucionário,
abrindo pelo narrador-sem-órgãos um amplo espaço de liberdade para
agenciamentos diversos, verdadeiro Devir, enorme espaço de criação.
A loucura que constitui o
terceiro plano, um plano de imanência, é essencial, sem a loucura a máquina
literária não seria possível, ela só se constrói sobre um Corpo-Sem-Órgãos
privado de todo o uso voluntário e organizado de suas faculdades. Mas esse
plano é possuidor de extrema sensibilidade e memória, no sentido que qualquer
movimento, qualquer fluxo transpassado, qualquer instigo que um órgão
alocando-se possa vir a provocá-lo geram um esboço intensivo, que por fim
provocam o uso involuntário. Deleuze nos diz: “Sensibilidade involuntária,
memória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais
intensas do corpo sem órgãos a signos de diversas natureza” (DELEUZE, 2006,
p.173). Esse plano de imanência que é o narrador, é vazio. O narrador, nesse
caso, não é uma figura imperial do significante, mas coadjuvante dos
agenciamentos de sua loucura, típica formação esquizofrênica não
individualizada na forma de um corpo orgânico (o homem, o animal), loucura
imanente que está em qualquer processo da Natureza indistinta. Narrador
incorpóreo, esquizofrênico universal que agencia desejos diversos “para
fazê-los marionetes de seu próprio delírio, potências intensivas de seu Corpo
Sem Órgãos, perfis de sua própria loucura” (DELEUZE, 2006, p.173). Deleuze
ainda comparará esse processo do narrador com o de uma aranha:
Mas
o que é um Corpo Sem Órgãos? Também a aranha nada vê, nada percebe, de nada se
lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia ela registra a mais
leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade que a
faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a
aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor signo que atravessa
seu corpo como uma onda e a faz pular sobre a
presa. (...) cada fio movimentado por esse ou aquele signo: a teia e a
aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. (...) estranha plasticidade do
narrador. Esse corpo-aranha do narrador. (DELEUZE, 2006, pp. 172-173)
É o Corpo sem Órgãos que
possibilita o Devir. Pois é assim, é justamente na produção que ele funciona
como antiprodução. Artaud busca no seu teatro da Crueldade seu Devir-animal,
suas necessidades e desejos. É nesta atitude de antiprodução que ele tem seu
aspecto revolucionário, questionando todas as Instituições, Saberes e Poderes
que se dizem Eternos e Universais dentro da sociedade (ainda) moderna, que
tentam afirmar a sua existência. Mas vamos para além da existência e não
existência, vamos para o Devir. O Corpo sem Órgãos, nega e destrói a tudo que
busca ser centro, a tudo que busca ser Eterno e Único, a tudo que procura
extasiar sua existência como necessária para tudo; o Corpo sem Órgãos busca
destruir a tudo que é ordenado, possibilitando o Novo, o Diferente, a vida, as
multiplicidades de relações, a Liberdade de tudo e todos interagirem com seus
fluxos. O Corpo sem Órgãos busca a morte para possibilitar a vida; pois a vida
é enxertada pela morte (imanentes).
É na arte que Artaud busca
suas linhas de fuga e sua máquina de guerra. Decide destruir a tudo que é
ordenado para poder conhecer a natureza e possibilitar a vida; o Corpo sem
Órgãos e o teatro da Crueldade são sua máquina de guerra contra isso. Deve-se
lutar contra toda a tentativa de codificação; ali, onde o autoritarismo tenta
classificar e ordenar, deve-se fugir; ali, no buraco onde o autoritarismo busca
preencher, deve-se cavar mais fundo, buscar outros buracos, estabelecer linhas
de fuga. Nós, homens, somos como Hermes e devemos burlar Apolo, despistar
Apolo, despistar a Ordem. É esse mesmo Hermes que cria a lira, do som mais belo
que encanta até a Apolo.
E é essa a função política da
arte; a arte como política desterritorializante que possibilita a liberdade; a
arte não como metáfora; a arte que choca, que deve chocar; aí que encontramos
Dionísio, Artaud lutou para se encontrar com Dionísio. Só assim se
possibilitaria a vida. Pois os homens são como Hermes. “Não o homem enquanto
rei da criação, mas como aquele que é tocado pela vida profunda de todas as
formas ou de todos os gêneros, que é encarregado das estrelas e dos animais, e
que não cessa de ligar uma máquina-órgão em uma máquina-energia, uma árvore no
seu corpo, um seio na boca, o sol no cu: eterno encarregado das máquinas do
universo.” (DELEUZE&GUATTARI. 1976, p. 19)
Não uma arte
mítica, ou ordenada; uma arte que choque e toque a toda a vida. É viver a arte.
Artaud buscou um teatro novo; um teatro-vida, pois sua vida era o seu teatro.
Pois ele precisava, se sentia sufocado, estava se afogando, precisava se rasgar
de tal forma tribal que pudesse se encontrar no plano imanente de produção de
desejos para construir o novo. Em sua vida-teatro, não existem platéias; é um
teatro mais preocupado em burlar a renúncia de si, a moral e o cuidado dos
outros, para dar espaço ao cuidado de si, a estética da existência e à
liberdade. E por isso a arte precisa ser cruel, chocar a todas as vidas,
destruir a todos os corpos e mentes, destroçar e desordenar a tudo e a todos.
O Corpo sem Órgãos esteve sempre
presente, não é algo a ser criado ou inventado. Ele é parte de todo e qualquer
processo. Artaud é em si um Corpo sem Órgãos. Em 1968, ele estava presente. Com
Antônio Conselheiro também estava. Com os hippies, os beatniks, artistas em geral,
ele, o Corpo sem Órgãos sempre esteve lá, cotidianamente: mesmo que não
reconhecido, abaixo de todo o asfalto urbano. E ele é uma prática. O Corpo sem Órgãos não se
opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo.
Uma prática de resistência contra o Organismo, este que é pregado pelos
moralistas aos quais todos se escravizam; organismos de higienização e
controle; registros mutiladores e disciplinares.
Agora podemos saber como o corpo
masoquista, o corpo drogado e o corpo esquizo funcionam; sua função política e
atitude revolucionária; é em si um ato-perigoso.
Como Espinosa demonstra, desconhecendo o campo da imanência (lá, onde se
produzem os infinitos desejos), os homens racionais se tornam irracionais e se
desesperam, se tornando moralistas e escravos, estando sempre à mercê dos
teólogos, dos psicanalistas, dos padres, dos juristas, de qualquer crença e
superstição; são eles, tomados pelo medo e pela esperança, que prontamente se
encantam pela culpa e pela confissão, se sujeitando ao poder de algum ente.
E é por isso que Deleuze diz que, a principal questão é: “como criar para
si um Corpo sem Órgãos?”. Ele está lá, sempre no submundo, imerso nos esgotos.
Durante a madrugada mostra a sua face diante do Caos, entre a boemia e a
indiferença, entre a desordem. Está lá, onde os ratos habitam.
Bukowski, maravilhosamente em uma
crônica (que cada linha merece palmas) diz que os fanáticos revolucionários são
tão supersticiosos e irracionais como os fanáticos religiosos: são capazes de
queimar a tudo, queimar até a avó e, assim, quando não tiver a mais nada,
descobrir-se-á quantos ratos moram na cidade, “não ratos humanos mas
ratos-ratos. E descobrirão que os ratos são as últimas coisas a se afogar, a
queimar, a morrer de fome; que eles são as primeiras coisas com capacidade de
achar comida e água porque estiveram fazendo isso durante séculos sem nenhuma
ajuda. Os ratos são os verdadeiros revolucionários; os ratos são os verdadeiros
undergrounds, mas não querem o seu cu exceto para mordiscar (...)” (BUKOWSKI.
2000, p. 86). Vá ao centro de São Paulo, na “boca de lixo”, de madrugada, entre
as proximidades da Praça da República e ele, o Corpo sem Órgãos, também estará
lá: entre as casas de sadomasoquismo, entre as prostitutas e travestis, entre
viciados e andrógenos, entre ratos.
O Corpo sem Órgãos sempre existiu; Bukowski ainda diz “se existe uma
batalha, e eu acredito que existiu, e foi isso que produziu Van Goghs e Mahlers
bem como Dizzy Gillespies e Charley Parkers, então por favor tomem cuidado com
os seus líderes, pois existem muitos nas suas fileiras que prefeririam ser
presidente da General Motors do que incendiar o Posto Shell da esquina. Mas
como eles não podem ter um eles pegam o outro. São esses ratos humanos que por
séculos nos têm mantido onde nos encontramos (...)”.(BUKOWSKI. 2000, p. 89)
Pois que tomemos cuidado com nossos líderes, tomemos cuidado para não nos
tornarmos rebanho de qualquer figura e discurso; tomemos cuidado para não nos
tornarmos fanáticos e desejarmos nossa própria escravidão, legitimando algo
como autoritário. Os fanáticos religiosos e os fanáticos revolucionários: merda
fria e merda quente, é tudo merda. “(...) você não consegue diferenciar cu de
buceta, irmãos. Imaginem isso e vocês já tem um começo. Ouçam com atenção e
vocês já têm um começo. Engula tudo, e você está morto. Deus se mandou da
árvore jogou a cobra e a buceta apertada do paraíso para longe e agora você tem
Karl Marx atirando maçãs douradas da mesma árvore, principalmente no rosto de
preto” (BUKOWSKI. 2000, p. 89). Deleuze diz:
Os
drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os Corpo sem
Órgãos prestam homenagem a Espinosa. O Corpo sem Órgãos é o campo de imanência
do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se
define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior,
falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).
Cada vez que o desejo é
traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de imanência, é porque há um padre
por ali. O padre lançou a tríplice maldição sobre o desejo: a da lei negativa,
a da regra extrínseca, a do ideal transcendente. (DELEUZE&GUATTARI,
1996, p. 15)
Se não é o padre, é o psicanalista, sempre
este que coloca um transcendente que esbarra o processo binário do desejo e
apropria a imagem de desejo como falta (não como produção). É contra isto que
se deve lutar. E é contra isso que todos esses lutaram. Artaud vivenciou isso,
junto com Van Gogh:
Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me
revoltar.
[...]
Se não tivesse havido
médicos
nunca teria havidos doentes,
nem esqueletos de mortos
doentes para escorraçar e
esfolar,
porque foi com médicos e
não com doentes que a sociedade começou
E é contra esse moralismo que Deleuze escreve, mostrando onde está o
Corpo sem Órgãos: “Eis
então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar
as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais
movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las,
assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento
dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra.
É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue liberar as
linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados, desprender
intensidades contínuas para um Corpo sem Órgãos. Conectar, conjugar, continuar:
todo um "diagrama" contra os programas ainda significantes e
subjetivos. Estamos numa formação social; ver primeiramente como ela é
estratificada para nós, em nós, no lugar onde estamos; ir dos estratos ao
agenciamento mais profundo em que estamos envolvidos; fazer com que o
agenciamento oscile delicadamente, fazê-lo passar do lado do plano de
consistência. É somente aí que o Corpo sem Órgãos se revela pelo que ele é,
conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum
de intensidades. Você terá construído sua pequena máquina privada,
pronta, segundo as circunstâncias, para ramificar-se em outras máquinas
coletivas” (DELEUZE&GUATTARI, 1996, p. 24). – Semelhantemente, Foucault irá defender a multiplicidade de
relações e a produção de distintos modos de vida.
Pois se vamos fazer teatro, se vamos fazer arte, que vivenciemos a arte!
Que nos destrocemos e destrocemos aos outros, nos destrocemos de tal maneira
que seja possível nos libertar de nossos automatismos, para polirmos as lentes
e largar o moralismo, encontrando-nos no campo imanente e, a partir daí,
possibilitar a criação; pois é daí que o novo sempre surge, em um campo com
infinitos atributos. Que choquemos a nós mesmos, que choquemos aos outros; não
só no palco, mas na vida, na rua, nas instituições; é preciso levar o teatro
para as ruas e um teatro espontâneo que nunca se repita, fazendo com que
platéia e atores se confundam. Artaud já havia dito que a tragédia no palco já
não basta mais, é necessário transportá-la para a vida! É necessário cagar,
foder, mijar e se cortar! Que cuidemos da estética de nossas próprias vidas, de
nossos próprios corpos, libertemos nossos corpos e mentes disciplinados de
nossos automatismos: a preocupação ética com o cuidado de si.
A arte já não é mais aquela Arte
metafísica (que busca ser independente do público), dividida em “arte baixa” e
“arte alta”, que busca a Perfeição e a Verdade, enjaulada em um teatro, em uma
moldura ou em uma forma-fôrma, com barreiras que separam platéia e artistas. As
barreiras agora são (e tendem a ficar mais) porosas; tudo se confunde em uma
relação de rede de fluxos demasiada complexa. Deve-se estar atento, sempre à
espreita, em busca de algum encontro, no imprevisto – aonde a arte se encontra?
Não se deve ter fórmulas.
O motor da História é inevitável, independente do nosso prazer individual
de gozo moral: não existem dois motores, um bom e um mal. Você pode chamar pelo
nome que quiser, pode chamá-lo de demônio ou santo salvador, mas é apenas uma:
a mesma potência comete atrocidades e também constrói prédios e pinta quadros.
E nela não há barreira entre o Bem e o Mal, não há valor, por mais que
queiramos imputá-los. Se pensar em outros termos, a incondicionalidade da
História tem uma simpatia pelo demônio.
Na mesma ação coletiva pode haver violência e revolução, pois a revolução
é necessariamente violenta e direta. Junte Godard e Rolling Stones, somando ao
radicalismo racial de uma minoria nada ingênua como os Panteras Negras e você
verá; junte em Maio de 68 estudantes, operários, mendigos, gays, imigrantes e
lá estará a verdadeira Greve Geral, em um corpo coletivo que se encontrou,
mesmo que em outros momentos se ignorem ou se detestem (essa mesquinharia
infantil é nula, nada significa, nada importa). Se apenas houvesse um, e
falasse apenas por um, seria patético. E você deverá juntar mais, e mais, pois
o processo fechado de um círculo é sempre incompleto, narcísico, paradoxal. E
você juntará com todos os outros processos que se agenciam e se confrontam,
nunca haverá paz. Você juntará Mao Tsé-Tung com Pop Arte, Lênin com
antropofagia, Duchamp, Beckett e Artaud com gastronomia escatológica, faça o
Exército Vermelho foder com a Frida Kahlo, Cabaré e Rock n’ Roll, Edgar Allan
Poe com rock gótico, Baudelaire com rock industrial, Rimbaud a beatnics, Mozart
a 68, Schoenberg a Bob Wilson, tecnologia a arte, Pop Filosofia, Marx e
psicanálise, barulho (noise) a cinema marginal, leve literatos americanos e
irlandeses para combater junto a anarquistas na Guerra Civil espanhola, e lá,
justo lá você estará, sempre incompleto, rasgado, torturado, para buscar
rasgar-se e costurar-se novamente, cada vez mais. Esse grande Inconsciente,
verdadeiro motor, estará sempre lá para transformar as pequenas partes, sempre
incompletas, que se rasgarão novamente umas com as outras. O monopólio é a sua
própria falência, e ele é insustentável. Não há limites, reescreva Marx,
reescreva Freud, reescreva Lacan para a sua vida, para seu trabalho, produza a
partir outro incompleto a partir do incompleto produto de outro incompleto,
deixe um Corpo violento que seja capaz de revelar a patetice de tudo que se
julga absoluto a partir do pesado humor do ridículo que Bataille e Poe são
capazes. Seja um gótico umbandista, tanto faz – mas não crie o absoluto para
si.
Independente dos conceitos, das palavras, dos jogos linguísticos, das
autorias acadêmicas (das quais não cessamos de recorrer, inclusive para afirmar
isso) – o motor continuará, com ou sem Humanidade. Independente de Deleuze, Foucault, Espinosa &
Cia, terem se tornado celebridades, autoridade e autoria absoluta, com jargões
e conceitos-chave sendo cotidianamente reproduzidos até a banalização, não
importa. A minha própria fala já faz parte dessa banalidade e não importa: leia
ou não leia, leia a metade ou leia tudo, mas depois me xingue, me critique, me
foda, apague tudo novamente, corte, rasgue e cole (isso, faça colagem!), me
ofenda com as suas colagens, por favor, faça aquilo que eu NÃO quero; se não
aguenta mais, corte um pedaço do meu cérebro, corte um pedaço do teu cérebro,
escreva outro para destruir novamente. Pois o motor funciona sem autoria, por
fora da Lei, antes do Significado, muito antes do Significante, e mais anterior
a qualquer possibilidade de interpretação moderna e racional: se a tudo
destruir, ele se moverá (esperemos que não tenha um intruso, um terceiro para
administrá-lo). Por isso, não se prenda a nada, e dê espaço para explodir esse
texto, explodir essas palavras, e explodir a tudo aquilo que te dizem ser
abominável ou detestável. Faça dessa abominação alguma coisa, crie a partir
dela algo novo. Visualize Marx, Foucault, Deleuze, Freud, quem quiser, e
planeje uma estratégia terrorista com um pensamento obsessivo: “um desses dias
os cortarei em pedacinhos”. Os torture, corte a carne viva e coma suas
entranhas, mate Marx, mate Foucault, construa seu pequeno grande e sensível
incompreendido monstro, Dr. Frankstein!
A arte emoldurada já não nos diz
muita coisa, as Obras-Primas já não nos dizem muito, ela já é codificada e está
com Apolo. Se a Indústria Cultural se apossou da arte, é necessário estabelecer
linhas de fuga, é necessário burlar. Se capturado, burlamos novamente como um
Eterno Retorno. Isso será sempre inevitável, então ao menos não sejamos cínicos
e saibamos da nossa transitoriedade e finitude. Se o é assim, burlaremos
novamente, e a única eternidade será a certeza de burlar. Nada programado; é o
incerto; de qualquer maneira, fluxos, sempre fluxos. Que a dança liberte nossos
corpos, assim como nossas almas de nossos automatismos; pois corpo, sabemos, é
necessariamente alma. Choque aos corpos e mentes maltratados e disciplinados,
robotizados nas filas do trem do metrô. Os faça dançar, como Björk faz em
“Dançando no Escuro”, com operários maltratados em uma civilização industrial
decadente. Não a dança do balé clássico, rígido, duro, programado, cartesiano, mas
algo fluido como Merce Cunningham, ou algo ainda a ser (perpetuamente) criado,
em um efeito ritornello. Não o corpo
inviolável, disciplinado, útil e eficiente, mas o corpo estético, ético,
libertário, vazio, que choca e afeta, afecta,
como os trabalhos de Ana Mendieta, Marina Abramovici, Otto Muehl, Ulrike
Ottinger, e como as artes do corpo e a
arte da performance propõe e nos leva ao limite de todas as esferaras humanas
(e questionar esse limite). Não importa; que falemos pelo cu e caguemos pela
boca, que choquemos e desestabilizemos o que já é garantido, dando espaço ao
novo, ao diferente, à liberdade. Deve-se estar atento para nunca nos tornarmos
um autoritário; e deve-se estar atento, realmente atento para, ao criar algo
novo, não ser fascista, não instaurar a pobreza em toda a grandeza. Também
devemos ser absolutamente sinceros no processo, para não cairmos no cinismo, na
demagogia de dar novo fôlego ao sistema, devemos doar a nossa própria carne, oferecer
sangue aos Deuses, rituais de sacrifício que resultem em morte brutal e
violenta, que não reste nada a não ser o cair do chão. Estamos à espreita, a
espera de encontros, a espera de acontecimentos, atentos à geografia não só
física, mas também virtual: atento aos fluxos e possíveis agenciamentos; atentos
a todos os processos moleculares e a todo o brilho dos cristais singulares. Estamos
prontos para traçarmos nossas cartografias.
POIS QUE
CAGUEM!
BIBLIOGRAFIA:
ARTAUD, Antonin. O
Teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BUKOWSKI, Charles. Notas
de um velho safado. Porto Alegre:
L&PM, 2000.
DELEUZE, Gilles. Espinosa:
filosofia prática. São Paulo: Escuta,
2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago,
1976.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs v. 3: capitalismo e esquizofrenia 2. Rio de Janeiro: 34,
1996.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado
Teológico Político: Prefácio. Disponível em: <http://www.consciencia.org/espinosatratado.shtml>.
Acesso em: 18 abr. 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da tragédia. São Paulo: Cia.
Das Letras, 2007.
RESUMO
Artaud: Corpo sem Órgãos e Prática de Liberdade
Uma dissertação
em cima do Corpo sem Órgãos de Antonin Artaud – a partir de Deleuze &
Guattari, Espinosa e Nietzsche – para poder se pensar em práticas de liberdade,
de resistência e de criação. Uma análise ética, uma formação estética, uma
prática política através de uma crítica às “Filosofias de Estado” e aos
Estados-filosofia. Pela esquizoanálise dá-se atenção a localizar os fluxos de
poder e assim estabelecer possíveis linhas de fuga, novos agenciamentos, novas
relações, novos modos de existência e possibilidades de vida.
Palavra-Chave: 1
– Artaud, Antonin; 2 - Deleuze, Gilles; 3 – Espinosa, Baruch de; 4 – Ética; 5 –
Liberdade; 6 – Multiplicidades; 7 – Corpo sem Órgãos; 8 – Nomadismo; 9 –
Esquizoanálise.
ABSTRACT
Artaud: Body without Organs and Freedom Practices
A dissertation about
Antonin Artaud’s “body without organs” – along with Deleuze
& Guattari, Espinosa and Nietzsche – to
think in practices of freedom, resistance and creation. An ethical analysis, a
forming aesthetics, a political practice through the criticism of the
"Philosophy of State" and the States-philosophy. From schizoanalysis, it gives attention on locating the
flows of power and thereby establish possible lines of escape, new agencies,
new relationships, new modes of existence and possibilities of life.
Keyword: 1 – Artaud,
Antonin; 2 – Deleuze, Gilles; 3 – Espinosa, Baruch de; 4 –
Ethics; 5 – Freedom; 6 – Multiplicities; 7 –Body without
Organs; 8 - Nommadism; 9 – Schizoanalysis.
[1] Palestra
conferida em primeira versão para o grupo de teatro “Cia Esquizocênicas” no
começo de 2007.
[2]
Graduando em Filosofia pela USP desde 2007; graduando em Relações Internacionais
pela FASM desde 2005.
[4] In:
Escritos de Antonin Artaud. Trad. Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM, 1983,
p.161.
[5] In: O
Anti-édipo. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p.
30.
[6] In: O
Anti-édipo. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, p.
17.